up:: 011a MOC Capital I
“Toda maquinaria desenvolvida consiste em três partes essencialmente distintas:
- a máquina motriz;
- o mecanismo de transmissão e, por fim,
- a máquina-ferramenta ou máquina de trabalho.
A máquina motriz atua como força motora do mecanismo inteiro. Ela gera sua própria força motora, como a máquina a vapor (…), ou recebe o impulso de uma força natural já existente e externa a ela, como a roda-d’água o recebe da queda d’água, as pás do moinho, do vento etc.
O mecanismo de transmissão, composto de volantes, eixos, rodas dentadas, polias, hastes, cabos, correiras, mancais e engrenagens dos mais variados tipos, regula o movimento, modifica sua forma onde é necessário (…) e o distribui e transmite à máquina-ferramenta.
Ambas as partes do mecanismo só existem para transmitir o movimento à máquina-ferramenta, por meio da qual ela se apodera do objeto de trabalho e o modifica conforme a uma finalidade.” (MARX, p. 446-7; grifo meu)
A máquina-ferramenta herda dos utensílios da Manufatura sua forma e conteúdo, “ainda que frequentemente sob forma muito modificada”.
“A máquina-ferramenta é, assim, um mecanismo que, após receber a transmissão do movimento correspondente, executa com suas ferramentas as mesmas operações que antes o trabalhador” (manufatureiro, “parcializado”) “executava com ferramentas semelhantes.” (MARX, p. 447-8; grifo meu)
Justamente pela simplificação das operações parciais da manufatura foi que a substituição da limitação física humana de operar somente tantas ferramentas ao mesmo tempo pôde ser superada.
O papel do homem, nesse ínterim, torna-se de “vigiar a máquina com os olhos e corrigir os erros dela com as mãos” (MARX, p. 448). É a mesma coisa com algoritmos hoje em dia!!
“Tão logo o homem, em vez de atuar com a ferramenta sobre o objeto de trabalho, passa a exercer apenas o papel de força-motriz sobre uma máquina-ferramenta, o fato de a força de trabalho se revestir de músculos humanos torna-se acidental, e o vento, a água, o vapor etc. podem assumir seu lugar” (MARX, p. 449; grifo meu)
O processo histórico da maquinaria
É a máquina a vapor (de ação dupla) de Watt que permitiu “a concentração da produção [mecanizada] nas cidades, ao invés de dispersá-la pelo interior”, em busca de fatores naturais para substituir a força-motriz humana (MARX, p. 450-1; grifo meu).
“Mas um sistema de máquinas propriamente dito só assume o lugar da máquina autônoma individual onde o objeto de trabalho percorre uma sequência conexa de diferentes processos gradativos e realizados por uma cadeia de máquinas-ferramentas diversificadas, porém mutuamente complementares. Aqui, por meio da divisão do trabalho, reaparece a cooperação peculiar à manufatura, mas agora como combinação de máquinas de trabalho parciais. As ferramentas específicas dos diferentes trabalhadores parciais (…) transformam-se agora em ferramentas de máquinas de trabalho especializadas, cada uma delas constituindo um órgão particular para uma função particular no sistema do mecanismo combinado de ferramentas.” (MARX, p. 453; grifo meu)
Não é do trabalho que a máquina surge, mas do meio de trabalho
“Do ponto de vista da divisão manufatureira do trabalho, a tecelagem não é um trabalho simples, mas, antes, um complexo trabalho artesanal, de modo que o tear mecânico é uma máquina que executa operações muito variadas. É absolutamente falsa a concepção de que a maquinaria moderna se apropria originalmente de operações que a divisão manufatureira do trabalho havia simplificado. As operações de fiar e tecer foram, durante o período da manufatura, diversificadas em novas espécies, e suas ferramentas foram aperfeiçoadas e diversificadas, mas o processo de trabalho em si não foi de modo nenhum dividido, mantendo seu caráter artesanal. Não é do trabalho que a máquina surge, mas do meio de trabalho.” (MARX, p. 452, nota de rodapé 100)
A divisão do trabalho de máquinas
Com a Maquinaria, o processo de trabalho adquire uma ‘rigidez’ com relação à Divisão do Trabalho, referente aos ‘men in the middle’:
“Se o trabalho [manufatureiro] é adaptado ao processo, este último também foi previamente adaptado ao trabalhador. Esse princípio subjetivo da divisão [do trabalho] deixa de existir na produção mecanizada.” (MARX, p. 454)
Trata-se, agora, objetivamente do processo de trabalho, considerado em seus subprocessos constituintes e na concatenação eficiente destes, i.e. com o mínimo de dispêndio de tempo entre operações.
“Cada máquina parcial fornece à máquina seguinte sua matéria-prima, e uma vez que todas atuam simultaneamente, o produto encontra-se tanto nos diversos estágios de seu processo de formação como na transição de uma fase da produção a outra. (…) A máquina de trabalho combinada, agora um sistema articulado que reúne tanto máquinas de trabalho individuais de vários tipos quanto diversos grupos dessas máquinas, é tanto mais perfeita quanto mais contínuo for seu processo total, quer dizer, quanto menos interrupções a matéria-prima sofrer ao passar de sua primeira à sua última fase e, portanto, quanto mais essa passagem de uma fase a outra for efetuada não pela mão humana, mas pela própria maquinaria.” (MARX, p. 454)
Eventualmente, a máquina torna-se um “autômato”, uma “máquina semovente1”, que requer não mais que a “assistência” do ser humano2.
“A partir do momento em que a máquina de trabalho executa todos os movimentos necessários ao processamento da matéria-prima sem precisar da ajuda do homem, mas apenas de sua assistência, temos um sistema automático de maquinaria, capaz de ser continuamente melhorado em seus detalhes.” (MARX, p. 455; grifo meu)
O Aufhebung da manufatura na maquinaria
Embora tenha sua base “natural-espontânea” na manufatura, a maquinaria não podia desenvolver-se plenamente devido à manufatura, que colocava-se como obstáculo ao seu desenvolvimento pleno. A produção maquinária tornou-se tão eficiente que a mão humana retardava seu funcionamento.
“O sistema mecanizado ergueu-se, portanto, de modo natural-espontâneo sobre uma base material que lhe era inadequada. Ao atingir certo grau de desenvolvimento, ele teve de revolucionar essa base – encontrada já pronta e, depois, aperfeiçoada de acordo com sua antiga forma – e criar para si uma nova, apropriada a seu próprio modo de produção. Assim como a máquina isolada permaneceu limitada enquanto foi movida apenas por homens, e assim como o sistema da maquinaria não pôde se desenvolver livremente até que a máquina a vapor tomasse o lugar das forças motrizes preexistentes – animal, vento e até mesmo água –, também a grande indústria foi retardada em seu desenvolvimento enquanto seu meio característico de produção, a própria máquina, existiu graças à força e à habilidade pessoais, dependendo, assim, do desenvolvimento muscular, da acuidade visual e da virtuosidade da mão com que o trabalhador parcial na manufatura e o artesão fora dela operavam seu instrumento limitado. (…) A partir de certo grau de desenvolvimento, porém, a grande indústria também entrou tecnicamente em conflito com sua base artesanal e manufatureira. A ampliação do tamanho das máquinas motrizes, do mecanismo de transmissão e das máquinas-ferramentas; a maior complexidade, multiformidade e a regularidade mais precisa de seus componentes, à medida que a máquina-ferramenta se distanciava do modelo artesanal (que originalmente dominava sua construção) e assumia uma forma livre, determinada apenas por sua tarefa mecânica; o aperfeiçoamento do sistema automático e a aplicação, cada vez mais inevitável, de um material difícil de ser trabalhado, como o ferro em vez da madeira – a solução de todas essas tarefas surgidas espontaneamente chocou-se por toda parte com as limitações pessoais, que mesmo os trabalhadores combinados na manufatura só conseguiam superar até certo grau, mas não em sua essência. Máquinas como a impressora, o tear a vapor e a máquina de cardar modernos não podiam ser fornecidas pela manufatura.” (MARX, p. 456-7)
Ou seja, não só o processo de produção em si operado por máquinas, mas também a própria produção das máquinas, encontravam-se atravancados pelas restrições humanas, por sua força e acuidade limitadas. Dessa forma, a mecanização industrial espalhou-se pelos vários ramos industriais3. Isso torna-se um feedback loop, pois a própria quantidade de Matéria-Prima consumida aumenta aceleradamente, o que requer maior mecanização das máquinas nestes setores extrativos, o que permitirá revoluções ulteriores na indústria, etc.
“A grande indústria teve, pois, de se apoderar de seu meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas. Somente assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés. Com a crescente produção mecanizada das primeiras décadas do século XIX, a maquinaria se apoderou gradualmente da fabricação de máquinas-ferramentas. No entanto, foi apenas nas últimas décadas que a colossal construção de ferrovias e a navegação oceânica a vapor deram à luz as ciclópicas máquinas empregadas na construção dos primeiros motores.” (MARX, p. 458)
Dessa forma, a produção emancipou-se do ‘conteúdo’ e até da forma humana/artesanal do trabalho, tomando o tamanho de fábricas inteiras e demandando quantidades exorbitantes de força-motriz. Fazia-se necessário, portanto, uma revolução nas formas de força-motriz que dessem suporte à Revolução Industrial. É neste contexto que a máquina a vapor é realmente revolucionária: é a dominação de um fenômeno físico que permite uma quantidade qualitativamente superior de força-motriz ao processo de produção capitalista mecanizado.
Maquinaria não gera valor, assim como qualquer capital constante
Máquinas fazem parte do Capital Constante, ou seja, “não cria valor nenhum, mas transfere seu próprio valor ao produto, para cuja produção ela serve” (MARX, p. 460), ainda que transfira-o parceladamente (Depreciação).
Porém, diferente dos Meios de Trabalho previamente empregados no modo de produção capitalista, agora passa-se a ter um instrumento que possui uma durabilidade maior, e, portanto, transfere cada vez menos Valor a produtos. No limite, transferiria de valor, assim como meios naturais (água, terra, etc) não possuem valor imediatamente4.
“Dada a proporção em que a maquinaria transfere valor ao produto, a grandeza dessa parcela de valor depende da própria grandeza de valor da maquinaria. Quanto menos trabalho ela contém em si, tanto menor é o valor que agrega ao produto. Quanto menos valor transfere, mais produtiva ela é e mais seu serviço se aproxima daquele prestado pelas forças naturais.” (MARX, p. 463)
Sobre o não-valor de recursos naturais
“Vimos que as forças produtivas que decorrem da cooperação5 e da divisão do trabalho não custam nada ao capital. São forças naturais do trabalho social. Forças naturais, como o vapor, a água etc., que são apropriadas para uso nos processos produtivos, também não custam nada, mas, assim como o homem necessita de um pulmão para respirar, ele também necessita de uma ‘criação da mão humana’ para poder consumir forças da natureza de modo produtivo. (…) O que sucede com as forças da natureza sucede igualmente com a ciência. Uma vez descobertas, a lei que regula a variação da agulha magnética [etc.], já não custam mais um só centavo.” (MARX, p. 460)
O que Marx quer dizer com “não custar nada” é que estes recursos são utilizados sem processo de troca no processo de sua aquisição.
“É somente na grande indústria que o homem aprende a fazer com que o produto de seu trabalho anterior, já objetivado” (ou seja, a máquina), “atue gratuitamente, em larga escala, como uma força da natureza.” (MARX, p. 461)
Não me é claro ainda por que pode-se pensar que, “Se subtraímos de ambas, da maquinaria e da ferramenta, seus custos médios diários e o consumo de matérias acessórias, como óleo, carvão etc., veremos então que elas atuam de graça, exatamente como as forças naturais que preexistem à intervenção do trabalho humano” (MARX, p. 461). Me parece que poderia-se argumentar da mesma forma que, subtraindo o salário pago ao trabalhador, seu trabalho é grátis. Se for assim, não é difícil ver que tudo é “grátis”. (Há alguma relação com A força produtiva conjunta é grátis, como uma reação química.)
Sobre compensar usar máquinas no processo de trabalho ou não
“Considerada exclusivamente como meio de barateamento do produto, o limite para o uso da maquinaria está dado na condição de que sua própria produção custe menos trabalho do que o trabalho substituído por sua aplicação. Para o capital, no entanto, esse limite se expressa de forma mais estreita. Como ele não paga o trabalho aplicado, mas o valor da força de trabalho aplicada6, o uso da máquina lhe é restringido pela diferença entre o valor da máquina e o valor da força de trabalho por ela substituída.” (MARX, p. 466; grifo meu)
Ou seja, como um meio de obtenção de Mais-Valor maior, caso a máquina não cumpra com seu propósito, então ela não deve ser empregada. É somente no caso em que ela, de fato, permite a redução do valor7 das mercadorias produzidas abaixo do socialmente necessário.
Dessa forma, já se discute sobre o elefante branco na sala: o aumento do Desemprego de mãos humanas.
Efeitos da maquinaria sobre o trabalhador
i) Flexibilização da força de trabalho necessária
Na época d’O Capital, mulheres e crianças podiam substituir a força de trabalho masculina quando a necessidade se apresentasse. Ao invés de empregar somente os pais de família, passa a ser possível empregar toda a família. Pode até ser que os preços das forças de trabalho da família inteira custem, agora, mais do que somente do pai de família, mas agora há mais jornadas de trabalho passíveis de mais-trabalho, portanto há um saldo líquido positivo de Mais-Valor extraído.
A aparência de “vender livremente força de trabalho” se desfaz no momento em que crianças passam a ser efetivamente vendidas por seus responsáveis (i.e. como escravos alugados). Ou seja, as condições objetivas de exploração do trabalho tornam-se condições também subjetivas de exploração dos sujeitos do trabalho e seus próximos – i.e. da sociedade em geral. Tudo o que era sagrado – família, religião, costumes, feriados e sabbaths – é dessecrado em prol da submissão aos interesses do Capital. Em particular o desenvolvimento – ou melhor, lack thereof – intelectual das massas e das crianças, logo acostumadas à nova hegemonia vigente.
ii) Prolongamento da jornada de trabalho
Uma máquina é tão mais produtiva quanto mais produtos ela produz num dado período de tempo. O período de tempo (em particular no século XIX) era dado pela jornada de trabalho, i.e. de ter algum “gerente humano” monitorando o trabalho da máquina. Idealmente, ela seria empregada ininterruptamente até sua Depreciação total, a fim de gerar Mais-Valor na menor quantidade de tempo possível; é realmente uma noção de “lucro” a curto prazo, pois – por exemplo, idealmente – seu output em 16h de uso diários por 7 anos seria o mesmo que em 8h diárias por 15 anos (MARX, p. 476-7).
Contudo, há fatores de desgaste que “demandam” que a máquina produza tão rápido quanto possível: a depreciação física, e o que Marx compara a uma espécie de “depreciação moral”:
“[A máquina] perde valor de troca na medida em que máquinas de igual construção podem ser reproduzidas de forma mais barata” (i.e. repartirão menos valor ainda aos seus produtos, barateando-os, tornando-os mais competitivos no mercado), “ou que máquinas melhores passam a lhe fazer concorrência.” (MARX, p. 477)
É justamente essa comparação – de valores a mercado – que induz uma depreciação a mais da máquina, i.e. uma efetiva redução no restante do valor de troca que ela pode efetivar em produtos, antes do capitalista considerá-la fisicamente obsoleta. Ou seja, ela torna-se obsoleta mais rápido, diminuindo seu tempo de depreciação efetivo. Aqui já ilustra-se um princípio de Obsolescência Programada.
O primeiro emprego de uma máquina em algum setor da indústria8 permite que se produza mais que as condições normais, de forma que se torna possível vender abaixo do Valor “social”/normal, mas ainda vender acima do valor efetivamente objetivado, como9
Ou seja, obtém-se Mais-Valor não só do Processo de Valorização usual, mas também pelo “preço” de mercado, pela concorrência.
Conforme se espalha pelo ramo em que opera, a maquinaria induz que “o valor social do produto da máquina decres[ça] até atingir seu valor individual” (MARX, p. 479). O mais-valor que obtém não é dos trabalhadores que substituiu, mas do mais-trabalho que extraiu de quem estava empregado (Capital Variável) e que estavam operando a máquina no lugar dos trabalhadores “substituídos” – ou seja, torna-se um trabalho não-remunerado, i.e. Mais-Valor.
Contradição na extração de mais-valor através da maquinaria
A Massa de mais-valor é definida como a Taxa de mais-valor vezes o número de trabalhadores empregados.
“Na aplicação da maquinaria à produção de mais-valor reside, portanto, uma contradição imanente, já que dos dois fatores que compõem o mais-valor fornecido por um capital de dada grandeza” (ou seja, a massa de mais-valor), “um deles, a taxa de mais-valor, aumenta somente na medida em que reduz o outro fator, o número de trabalhadores. Essa contradição imanente se manifesta assim que, com a generalização da maquinaria num ramo industrial, o valor da mercadoria produzida mecanicamente” (i.e. individual) “se converte no valor social que regula todas as mercadorias do mesmo tipo, e é essa contradição que, por sua vez, impele o capital, sem que ele tenha consciência disso, a prolongar mais intensamente a jornada de trabalho, a fim de compensar a diminuição do número proporcional de trabalhadores explorados por meio do aumento não só do mais-trabalho relativo, mas também do absoluto.” (MARX, p. 480; grifo meu)
Dessa forma, com a proliferação da maquinaria10 num dado ramo, torna-se necessário aumentar o tempo de trabalho, a fim de compensar a uniformização (logo, neutralização) dos ganhos de mais-valor advindos dessa nova tecnologia.
Outra forma de ver isso é pela fórmula (MARX, p. 376)
onde é Valor da Força de Trabalho média, é Tempo Excedente de Trabalho sobre Tempo de Trabalho Socialmente Necessário, e é número de trabalhadores empregados. Ceteris paribus, tem-se que a redução de trabalhadores reduzirá a massa de mais-valor produzida. Portanto, conforme essa nova tecnologia prolifera-se num dado ramo industrial – ou seja, seus ganhos extraordinários normalizam-se e anulam-se socialmente –, o capitalista individual é propelido (mantido constante) a aumentar , a fim de manter sua massa de mais-valor.
“Se, portanto, o emprego capitalista da maquinaria cria, por um lado, novos e poderosos motivos para o prolongamento desmedido da jornada de trabalho, revolucionando tanto o modo de trabalho como o caráter do corpo social de trabalho e, assim, quebrando a resistência a essa tendência, ela” (a maquinaria) “produz, por outro lado, em parte mediante o recrutamento para o capital de camadas da classe trabalhadora que antes lhe eram inacessíveis, em parte liberando os trabalhadores substituídos pela máquina, uma população operária redundante, obrigada a aceitar a lei ditada pelo capital. Daí este notável fenômeno na história da indústria moderna, a saber, que a máquina joga por terra todas as barreiras morais e naturais da jornada de trabalho. Daí o paradoxo econômico de que o meio mais poderoso para encurtar a jornada de trabalho se converte no meio infalível de transformar todo o tempo de vida do trabalhador e de sua família em tempo de trabalho disponível para a valorização do capital.” (MARX, p. 480)
iii) Intensificação do trabalho
O emprego de máquinas intensificou a jornada de trabalho, de maneira intrínseca, em termos de esforço humano. Chega um ponto em que se torna contraproducente aumentar a jornada de trabalho em si (extensivamente, em tempo), pois o retorno em produção será menor. Nesse sentido, as ‘limitações humanas’ induzem à busca de Mais-Valor Extra (ganhos em produtividade), assim como restrições enforçadas pelo Estado quanto à jornada de trabalho. Ou seja, trata-se agora não só da medida do tempo de trabalho, mas também a medida de seu “grau de condensação” (MARX, p. 482).
“Tão logo a redução da jornada de trabalho – que cria a condição subjetiva para a condensação do trabalho, ou seja, a capacidade do trabalhador de exteriorizar mais força num tempo dado – passa a ser imposta por lei, a máquina se converte, nas mãos do capitalista, no meio objetivo e sistematicamente aplicado de extrair mais trabalho no mesmo período de tempo. Isso se dá de duas maneiras: pela aceleração da velocidade das máquinas e pela amplicação da escala da maquinaria que deve ser supervisionada pelo mesmo operário, ou do campo de trabalho deste último. A construção aperfeiçoada da maquinaria11 é, em parte, necessária para que se possa exercer uma maior pressão sobre o trabalhador e, em parte, acompanha por si mesma a intensificação do trabalho, uma vez que a limitação da jornada de trabalho obriga o capitalista a exercer o mais rigoroso controle sobre os custos de produção.” (MARX, p. 484; grifo meu)
A divisão do trabalho humano pautada pela divisão de máquinas
Ou seja, aqui trata-se de que o trabalho torne-se mais “condensado”, a fim de que “não se deixe ocioso o capital” do capitalista12.
“A capacidade de rendimento da feramenta é emancipada das limitações pessoais da força humana de trabalho. Com isso, supera-se a base técnica sobre a qual repousa a divisão do trabalho na manufatura. No lugar da hierarquia de trabalhadores especializados que distingue a manufatura, surge na fábrica automática a tendência à equiparação ou nivelamento dos trabalhos que os auxiliares da maquinaria devem executar” (MARX, p. 490-1)
Assim outrora com as máquinas, hoje em dia com o ramo de programação, em seus diversos setores ultra-especializados.
A Divisão do Trabalho de pessoas passa a girar em torno de “máquinas especializadas”, não mais do métier dos trabalhadores em si.
“Todo trabalho na máquina exige instrução prévia do trabalhador para que ele aprenda a adequar seu próprio movimento ao movimento uniforme e contínuo de um autômato. Como a própria maquinaria coletiva constitui um sistema de máquinas diversas, que atuam simultânea e combinadamente, a cooperação que nela se baseia exige também uma distribuição de diferentes grupos de trabalhadores entre as diversas máquinas. Mas a produção mecanizada suprime a necessidade de fixar essa distribuição à maneira como isso se realizava na manufatura, isto é, por meio da designação permanente do mesmo trabalhador ao exercício da mesma função. Como o movimento total da fábrica não parte do trabalhador e sim da máquina, é possível que ocorra uma contínua mudança de pessoal sem a interrupção do processo de trabalho. (…) Na fábrica, os serviços dos simples ajudantes podem, em parte, ser substituídos por máquinas e, em parte, permitem, em virtude de sua total simplicidade, a troca rápida e constante das pessoas condenadas a essa faina.” (MARX, p. 492-3; grifo meu)
O conhecimento técnico passa a girar em torno do funcionamento das máquinas, como manejá-las, etc. Como há diferenciação entre as várias máquinas que “colaboram”, assim deve haver diferenciação do trabalho humano, para permitir/assegurar a ordem do processo inteiro. Como o ‘sujeito’ torna-se a máquina, os serviços mais simples são sempre passíveis de serem suprimidos/automatizados. Não há mais trabalhadores que devem permanecer no mesmo cargo por deterem o know-how específico (techné?), pois assinam-se trabalhadores a operações simples de máquinas simples.
…Mas isso vale hoje em dia também? No meio corporativo em particular?
A alienação advinda do trabalho na grande indústria
“Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina. Lá, o movimento do meio de trabalho parte dele; aqui, ao contrário, é ele quem tem de acompanhar o movimento. Na manufatura, os trabalhadores constituem membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, tem-se um mecanismo morto, independente deles e ao qual são incorporados como apêndices vivos.” (MARX, p. 494)
A exploração do trabalho toma forma física e espiritual com a maquinaria, ao potencializar o fato de que “a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo” (MARX, p. 495; grifo meu)13. A Alienação do Trabalho não tem mais onde se esconder, mostrando-se despudoradamente.
“Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva” (MARX, p. 495)
É neste contexto que surge o ludismo: não como (mera) repulsa à inovação tecnológica, mas à miséria que tais artifícios trouxeram a multidões14 – tendo-se em vista a já-”dependizada” Autonomia do povo, sem amortecimentos dessa onda de demissões e pobreza conseguintes15.
“Como máquina, o meio de trabalho logo se converte num concorrente do próprio trabalhador. A autovalorização do capital por meio da máquina é diretamente proporcional ao número de trabalhadores cujas condições de existência ela aniquila.” (MARX, p. 502-3)
Com o emprego da maquinaria em detrimento de mãos humanas, naturalmente aumenta o Desemprego e, portanto, um afluxo de trabalhadores para “ramos industriais mais acessíveis”, a preços abaixo do Valor da Força de Trabalho16 e em condições mais precárias.
O capitalista bem sabe do poder que maneja, sobre a “vida e morte” dos trabalhadores a que tem acesso em potentia, brandindo-a sobre a cabeça daqueles que ousem desafiar sua hegemonia despótica. A força de trabalho torna-se algo repulsivo ao capitalista, que, ironicamente, dela precisa para seu profit as usual.
Sobre a “liberação” de força de trabalho pela maquinaria
Aparentemente, há algum consenso entre os economistas clássicos de que “toda maquinaria que desloca trabalhadores sempre libera, simultânea e necessariamente, um capital adequado para ocupar esses mesmos trabalhadores” (MARX, p. 510), que é o foco da crítica de Marx nesta seção.
A introdução da maquinaria age como “liberação”17 não só da força de trabalho que substitui, como também dos artigos de subsistência a que tinham acesso e consumiam – portanto, em maior ou menor medida, destes ramos que as produziam também. Pela visão da economia liberal, é uma comprovação cabal de oferta e demanda, mas o que ocorre é que, agora, parte do Capital Variável que os ramos de subsistência (que atendiam os trabalhadores que foram “liberados” pela maquinaria) empregavam também serão passíveis de serem reduzidos em seus processos de produção. Ou seja, é um efeito em cascata no tocante à Composição Técnica do Capital.
A economia liberal vê a demissão dos trabalhadores substituídos por máquinas com otimismo, como forma de que “busquem especializações novas” a fim de atender mais eficientemente ao mercado etc.
“…os operários expulsos” (pela maquinaria) “de um ramo da indústria podem, sem dúvida, procurar emprego em qualquer outro ramo. Se o encontram e, com isso, reata-se o vínculo entre eles e os meios de subsistência com eles liberados, isso se dá por meio de um capital novo, suplementar18, que busca uma aplicação, mas de modo algum por meio do capital que já funcionava anteriormente e agora se converteu em maquinaria. E, mesmo assim, que perspectiva miserável têm eles! Mutilados pela divisão do trabalho, esses pobres diabos valem tão pouco fora de seu velho círculo de atividade que só logram o acesso a alguns poucos ramos laborais inferiores e, por isso, constantemente saturados e sub-remunerados.” (MARX, p. 512-3)
A crítica do uso capitalista da tecnologia não é (necessariamente) uma crítica da tecnologia per se
As contradições que vêm do emprego das máquinas advêm do emprego capitalista delas.
O “transbordamento” da aplicação da maquinaria em um setor industrial
“Assim, com a expansão do sistema fabril num ramo industrial, aumenta inicialmente a produção em outros ramos que lhe fornecem seus meios de produção.” (MARX, p. 515)
A “liberação” dos trabalhadores no setor em que a maquinaria infiltrou-se gera Força de Trabalho excedente para outros ramos industriais, em particular para aqueles que atendem este setor recém-mecanizado – em particular pelo sua necessidade maior de consumo de Meios de Produção e Matéria-Prima. Eventualmente, é empregado para a própria produção de máquinas. Ou seja, não só o trabalhador foi substituído pela máquina, como agora produz mais máquinas que substituirão mais trabalhadores!
“À medida que a indústria mecanizada, com um número de trabalhadores relativamente menor, fornece uma massa cada vez maior de matérias-primas, produtos semiacabados, instrumentos de trabalho etc., a elaboração dessas matérias-primas e produtos intermediários se divide em inúmeras subespécies e incrementa, assim, a diversidade dos ramos da produção social. A indústria mecanizada impulsiona a divisão social do trabalho muito mais do que a manufatura, pois amplia em grau incomparavelmente maior a força produtiva dos setores de que se apodera.” (MARX, p. 516)
A mecanização de um setor industrial potencializa a Divisão do Trabalho de ramos industriais que o atendem, ao passo que requer-se deles uma quantidade maior de meios de produção/matéria prima, induzindo até surgimento de ramos especializados para atender tal demanda.
Conforme a demanda por infraestrutura aumenta, devido ao ímpeto acelerado do mercado da grande indústria – tanto para circulação de matérias-primas como de Mercadorias em geral –, há uma utilização da mão-de-obra improdutiva/“liberada” (MARX, p. 517), em particular ramos que não demandem muito conhecimento técnico, “mais rudimentares” etc19. Construção civil vem à mente, e é um ramo pertinente até hoje: ao menos no Brasil, é um bom proxy (Correlação) do crescimento econômico. Inclusive acabam aproveitando-se do Exército Industrial de Reserva (Sobrepopulação Relativa), tanto para as mãos quanto para os preços baixos.
A composição do capital e seus rendimentos, mediante maquinaria
Dessa forma, pode ocorrer, mesmo que a proporção relativa de força de trabalho humana na composição do capital tenha caído percentualmente, que a quantidade absoluta de trabalhadores se mantenha igual ou até mesmo aumente – mediante a expansão da indústria. Por exemplo (MARX, p. 521):
- Suponhamos inicialmente uma decomposição de um capital semanalmente aplicado de \frac{2}{5}200), capital variável ($300)
- Suponha-se agora que a produção se mecanize, induzindo uma mudança relativa na composição do capital: capital constante (\frac{1}{5}100)
Ou seja, caso o capital semanalmente aplicado triplique, então o capital variável empregado será o mesmo que na condição prévia – mas agora há \1500$500$! É aqui que reside, mesmo que em germe, a noção burguesa de que “precisamos dos empresários para nossos trabalhos”, trickle-down economics, etc. Nisso, porém, assume-se que não há mecanizações consecutivas, diminuindo ainda mais a proporção variável do capital, reduzindo também a quantidade absoluta de trabalhadores empregados.
“Anteriormente, partimos do pressuposto de que, ao crescer o capital total, sua composição permanecia constante, pois tampouco se modificavam as condições de produção. Mas já sabemos que, a cada progresso do sistema da maquinaria, aumenta a parte constante do capital, isto é, a parte composta de maquinaria, matéria-prima etc., ao mesmo tempo em que diminui o capital variável, investido em força de trabalho; e sabemos também que em nenhum outro método de produção o aperfeiçoamento é tão constante e, por isso, a composição do capital total é tão variável. Essa mudança contínua é, no entanto, interrompida de modo igualmente constante por intervalos de parada e por uma expansão meramente quantitativa sobre uma dada base técnica. Com isso, aumenta o número de trabalhadores ocupados.” (MARX, p. 521-2)
Quanto aos rendimentos que a maquinaria permite ao se apossar primeiramente de um ramo industrial:
“Esse período inicial, em que a máquina conquista pela primeira vez seu campo de ação” (em que “a produção mecanizada se expande num ramo industrial à custa do artesanato ou da manufatura”), “é de importância decisiva devido aos extraordinários lucros que ajuda a produzir. Estes não só constituem, por si mesmos, uma fonte de acumulação acelerada, como atraem à esfera favorecida da produção grande parte do capital social adicional que se forma constantemente e busca novas aplicações.” (MARX, p. 522)
É este Santo Graal que o capital continua buscando, um Eldorado que o lançará à frente da concorrência… para seus 15 minutos de lucro, antes de que normalizem-se suas condições extraordinárias.
Conforme expandem-se as bases técnicas de produção mecanizada de máquinas, obtenção de minérios e matérias-primas, e meios de transporte úteis à produção e circulação de um dado ramo industrial, “em suma, [conforme] são estabelecidas as condições gerais de produção correspondentes à grande indústria”, este ramo industrial torna-se suscetível ao crescimento “aos saltos”, que encontra limites somente “na insuficiência de matéria-prima e de mercado por onde escoar seus próprios produtos” (MARX, p. 522).
Desse modo, a produção mecanizada torna-se devedora20, assim como perpetradora, da colonização, devido ao impacto econômico/social/político que seus produtos causavam nas economias estrangeiras em que põem suas garras.
“Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destroi todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.” (Manifesto do Partido Comunista)
Ao arruinar economias prévias internacionalmente, induzem (forçam) com que adotem Economias Agroexportadoras, o que os economistas liberais cunham de Vantagem Comparada.
“…o barateamento dos produtos feito[s] à máquina e os sistemas revolucionados de transporte e de comunicação são armas para a conquista de mercados estrangeiros. Ao arruinar o produto artesanal desses mercados, a indústria mecanizada os transforma compulsoriamente21 em campos de produção de sua matéria-prima. Assim, por exemplo, as Índias Orientais foam obrigadas a produzir algodão, lã, cânhamo, juta, anil etc. para a Grã-Bretanha. (…) Cria-se, assim, uma nova divisão internacional do trabalho, adequada às principais sedes [Hauptsitzen] da indústria mecanizada, divisão que transforma uma parte do globo terrestre em campo de produção preferencialmente agricola” (eu adicionaria “mineral” também, cf. exportação de guano do Peru para a Grã-Bretanha) “voltado a suprir as necessidades de outro campo, preferencialmente industrial.” (MARX, p. 523; destaque meu)
Neste sentido, diga-se de passagem, dificilmente se diria que estes países decidiram-se 100% voluntariamente a ater-se a suas “vantagens comparativas”22; anzi, foram impelidos (à força da arma ou do dinheiro) a servirem at the Market’s pleasure23.
Sobre os ciclos industriais
“A enorme capacidade, própria do sistema fabril, de expandir-se aos saltos e sua dependência do mercado mundial geram necessariamente uma produção em ritmo febril e a consequente saturação dos mercados, cuja contração acarreta um período de estagnação. A vida da indústria se converte numa sequência de períodos de vitalidade mediana, prosperidade, superprodução, crise e estagnação. A insegurança e a instabilidade a que a indústria mecanizada submete a ocupação e, com isso, a condição de vida do trabalhador tornam-se normais com a ocorrência dessas oscilações periódicas do ciclo industrial. Descontadas as épocas de prosperidade, grassa entre os capitalistas a mais encarniçada luta por sua participação individual no mercado. Tal participação é diretamente proporcional ao baixo preço do produto. Além da rivalidade que essa luta provoca pelo uso da maquinaria aperfeiçoada, substitutiva de força de trabalho, e pela aplicação de novos métodos de produção, chega-se sempre a um ponto em que se busca baratear a mercadoria por meio da redução forçada dos salários abaixo do valor da força de trabalho” (MARX, p. 525; grifo meu)
Portanto, surge uma periodicidade do emprego maior/menor de trabalhadores, nível este ditado tanto pelas mudanças tecnológicas quanto pela saturação dos mercados.
“Desse modo, os trabalhadores são continuamente repelidos e atraídos, jogados de um lado para outro, e isso em meio a uma mudança constante no que diz respeito ao sexo, idade e destreza dos recrutados” (MARX, p. 526)
Suprassunção da indústria em geral pela grande indústria
“Com o desenvolvimento do sistema fabril e o conseguinte revolucionamento da agricultura, não só se amplia a escala da produção nos demais ramos da indústria como também se modifica seu caráter. Por toda parte torna-se determinante o princípio da produção mecanizada, a saber, analisar o processo de produção em suas fases constitutivas e resolver os problemas assim dados por meio da aplicação da mecânica, da química etc., em suma, das ciências naturais. Logo, a maquinaria se impõe, ora neste, ora naquele processo parcial no interior das manufaturas. Com isso, a cristalização rígida da organização manufatureira” (no tocante aos trabalhadores humanos especializados), “que tem origem na velha divisão do trabalho, é dissolvida e dá lugar a uma modificação incessante. Além disso, a composição do trabalhador coletivo ou do pessoal combinado de trabalho é revolucionada desde seus fundamentos. Contrariamente ao período da manufatura, agora o plano da divisão do trabalho se baseia, sempre que possível, (…) [no] ‘cheap labour’, o ‘trabalho barato’, como o inglês o denomina de modo tão característico.” (MARX, p. 532-3)
A maquinaria (empregada sob uso capitalista) força não só a Divisão do Trabalho (que já era enforçada pela Manufatura), como a mecanização dos trabalhos parcializados; força-os ante a força da concorrência, para que mantenham-se no mercado e sobrevivam, e à força colonizadora. Dessa forma, a mesma “força alheia” que os impele a mecanizar-se, impele-os a continuamente aperfeiçoar sua maquinaria, pelo mesmo pretexto de não serem tragados pela concorrência (ou pela força violenta da metrópole). Dessa forma, justamente pela composição do capital inflar-se pela via constante, faz-se necessário empregar cheap labor, precarizando-se as condições de trabalho.
“Isso vale não só para toda a produção combinada em larga escala, quer empregue maquinaria ou não, mas também para a assim chamada indústria domiciliar [Hausindustrie], tenha ela lugar nas residências privadas dos trabalhadores ou em pequenas oficinas. Essa assim chamada indústria domiciliar moderna nada tem a ver, exceto pelo nome, com a indústria domiciliar antiga, que pressupunha um artesanato urbano e uma economia camponesa independentes, além de, sobretudo, um lar de uma família trabalhadora. Atualmente, essa indústria se converteu no departamento externo da fábrica, da manufatura ou da grande loja.” (MARX, p. 533)
É justamente a estes espaços dispersos a que os trabalhadores “supranumerários” [überzählig] – da diáspora que a grande indústria perpetrou – acorrem, submetendo-se a condições ainda mais precárias que a tendência normal torna-se, justamente por serem dispersos e under the radar de legislações trabalhistas etc. Hoje em dia, claramente vem à mente os sweatshops no Sul Global, que, assim como no caso exposto por Marx, atuam à mercê da “necessidade do capitalista de ter à sua disposição um exército sempre preparado para entrar em ação em qualquer flutuação de demanda” (MARX, p. 542; grifo meu), nos quais aproxima-se também o emprego (como à época de Marx) de crianças, casos análogos a escravidão etc.
“O barateamento da força de trabalho por meio do simples abuso de forças de trabalho femininas e imaturas” (i.e. crianças), “do roubo de todas as condições normais de trabalho e de vida[,] e da brutalidade nua e crua do trabalho excessivo e do trabalho noturno[,] acaba por se chocar contra certas barreiras naturais que já não podem se transpor, assim como ocorre com o barateamento das mercadorias e a exploração capitalista em geral, que repousam sobre esses fundamentos. Assim que esse ponto é finalmente alcançado, e isso demora bastante, soa a hora para a introdução da maquinaria e a transformação, agora rápida, da produção domiciliar dispersa (ou inclusive da manufatura) em produção fabril” (MARX, p. 541)
É justamente quando tais indústrias subsidiárias à grande indústria (“indústrias domiciliares”) não podem baratear-se any further, por seus “limites naturais” (remunerações mínimas aceitáveis etc), que “soa a hora da maquinaria”, que permite que caiam os salários dos “artesãos mais bem colocados, com os quais a máquina concorre”, abrindo caminho para o emprego de mão-de-obra menos especializada (como mulheres e crianças) (MARX, p. 543). Mais do que isso: induz pequenos proprietários a venderem seus parcos meios de produção, ante concorrência com maquinaria bem mais eficiente, jogando-os ao proletariado, no melhor dos casos, e à sobrepopulação relativa, no pior.
“As constantes alterações na construção e o barateamento das máquinas depreciam de modo igualmente constante seus modelos antigos e fazem com que estes só sejam lucrativos quando, comparados a preços irrisórios, são utilizados em massa por grandes capitalistas.” (MARX, p. 545)
A situação é análoga à compra de terras de habitantes/produtores locais em áreas da fronteira agrícola no Brasil, p. ex. (cf. Apêndice B Sobre as ameaças à existência da agricultura familiar).
O avanço de leis fabris e legislações trabalhistas também impulsionam o revolucionamento do trabalho predominantemente feminino/infantil pela introdução da máquina, tanto pela parte do capitalista que precisa manter seu capital fluindo ininterruptamente (e que busca maiores extrações de mais-valor), quanto pela parte da própria indústria domiciliar, pois “A exploração ilimitada de forças de trabalho a baixo preço constitui o único fundamento de sua competitividade” (MARX, p. 546)24.
Ao mesmo tempo, a legislação a favor do trabalhador até tem um papel milagroso de desfazer as crenças catastróficas dos burgueses – de que diminuir a jornada de trabalho vai arruinar seus lucros etc –, ao forçar melhoras nos processos de produção e na qualidade de vida (-ish) de seus trabalhadores. Quem diria!?
Força de trabalho sempre a postos
“Nas fábricas e manufaturas ainda não sujeitas à lei fabril, reina periodicamente, durante a assim chamada temporada” (“regulada seja pela periodicidade das estações do ano mais favoráveis à navegação, seja pela moda, e a urgência de atender no menor prazo possível a encomendas surgidas repentinamente”, MARX, p. 548), “o mais terrível sobretrabalho, realizado num fluxo intermitente, em decorrência de encomendas súbitas. (…) na esfera do trabalho domiciliar (…), cria-se sistematicamente um exército industrial de reserva sempre disponível, dizimado durante parte do ano pelo mais desumano trabalho forçado e, durante a outra parte, degradado pela falta de trabalho” (MARX, p. 549; grifo meu)
A abertura ao mercado mundial coloca os trabalhadores (em particular do exército industrial de reserva) à mercê das vontades as mais excêntricas e dos prazos os mais absurdos. A própria indústria da moda tem, em seu âmago, esse ímpeto de “explorar ao máximo” durante a temporada, e “deixar ao relento” seus trabalhadores no resto do ano (MARX, p. 550).
“O que poderia caracterizar melhor o modo de produção capitalista do que a necessidade de lhe impor as mais simples providências de higiene e saúde por meio da coação legal do Estado?” (MARX, p. 552)
A desmistificação dos ofícios artesanais devido à maquinaria
O advento da maquinaria “despetrificou” os ofícios de trabalho, ao remover o “véu de mistério” que permeava a técnica (techné) de cada ofício. Tudo torna-se passível de ser decomposto em seus elementos constitutivos – e, portanto, inteligíveis mesmo àqueles que não dedicaram suas vidas ao ofício, posto que são gerais, não dependentes da subjetividade humana, até mesmo (em certa medida) praticáveis por não-humanos.
“Enquanto artesanato e manufatura constituem a base geral da produção social, a subsunção do produto a um ramo exclusivo da produção, a supressão da diversidade original de suas ocupações é um momento necessário do desenvolvimento. Sobre essa base, cada ramo particular da produção encontra empiricamente a configuração técnica que lhe corresponde, aperfeiçoa-a lentamente e, num certo grau de maturidade, cristaliza-a rapidamente. Além de novos materiais de trabalho fornecidos pelo comércio, a única coisa que provoca modificações aqui e ali é a variação gradual do meio de trabalho. Uma vez alcançada a forma adequada à experiência, também ela se ossifica, como o comprova sua transmissão, muitas vezes milenar, de uma geração a outra. (…) A grande indústria rasgou o véu que ocultava aos homens seu próprio processo social de produção e que convertia os diversos ramos da produção, que se haviam particularizado de modo natural-espontâneo, em enigmas uns em relação aos outros, e inclusive para o iniciado em cada um desses ramos. O princípio da grande indústria, a saber, o de dissolver cada processo de produção propriamente dito em seus elementos constitutivos, e, antes de tudo, fazê-lo sem nenhuma consideração para com a mão humana, criou a mais moderna ciência da tecnologia.” (MARX, p. 556)
“A indústria moderna jamais considera nem trata como definitiva a forma existente de um processo de produção. Sua base técnica é, por isso, revolucionária, ao passo que a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente conservadora.” (MARX, p. 557)
Por sua própria natureza sempre cambiante, em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, espalha-se uma aura de “obsolescência” no ar, de “descartabilidade”: o fator subjetivo do trabalho cede ao aspecto puramente objetivo/quantitativo, agora definitivamente sob o jugo da maquinaria. Trata-se agora de números invés de competências. Torna-se mera necessidade ‘a contragosto’ (aos capitalistas piedosos) que “essa contradição desencadeia um rito sacrificial ininterrupto da classe trabalhadora” (MARX, p. 557).
“A natureza da grande indústria condiciona, assim, a variação do trabalho, a fluidez da função, a mobilidade pluridimensional do trabalhador. Por outro lado, ela reproduz, em sua forma capitalista, a velha divisão do trabalho com suas particularidades ossificadas. Vimos como essa contradição absoluta suprime toda tranquilidade, solidez e segurança na condição de vida do trabalhador, a quem ela ameaça constantemente com privar-lhe, juntamente com sua função parcial, de seu meio de subsistência; como, juntamente com sua função parcial, ela torna supérfluo o próprio trabalhador; como essa contradição desencadeia um rito sacrificial ininterrupto da classe trabalhadora, o desperdício mais exorbitante de forças de trabalho e as devastações da anarquia social.” (MARX, p. 557)
A necessidade da atividade plurilateral do trabalhador
Justamente por essa polivalência da demanda de trabalho, faz-se necessário que sua oferta também seja polivalente.
“Ela transforma numa questão de vida ou morte a substituição dessa realidade monstruosa, na qual uma miserável população trabalhadora é mantida como reserva, pronta a satisfazer as necessidades mutáveis de exploração que experimenta o capital, pela disponibilidade absoluta do homem para cumprir as exigências diversas do trabalho; a substituição do indivíduo parcial, mero portador de uma função social de detalhe [gesellschaftlicher Detailfunktion], pelo indivíduo plenamente desenvolvido, para o qual as diversas funções sociais são modos alternantes de atividade.” (MARX, p. 558; grifo e detalhe meus)
É neste ínterim que surgem escolas politécnicas e “écoles d’enseignement professionnel”, para melhor capacitação do trabalhador. Há uma contradição imanente aqui: ao mesmo tempo que o trabalho (cooperativo, manufatureiro e, por fim, mecanizado) passa a mutilar a atividade do trabalhador, tornando-o mero componente parcial do processo, torna-se agora imperioso que o trabalhador médio seja apto de desempenhar as mais variadas funções, às quais as ondas do mercado arrastem-no. Ou seja, a divisão do trabalho precisa ser aufhebt.
“Se a legislação fabril, essa primeira concessão penosamente arrancada ao capital, não vai além de conjugar o ensino fundamental com o trabalho fabril, não resta dúvida de que a inevitável [unvermeidlich] conquista do poder político pela classe trabalhadora garantirá ao ensino teórico e prático da tecnologia seu devido lugar nas escolas operárias. Mas tampouco resta dúvida de que a forma capitalista de produção e as condições econômicas dos trabalhadores que lhe correspondem encontram-se na mais diametral contradição com tais fermentos revolucionários e sua meta: a superação da antiga divisão do trabalho. O desenvolvimento das contradições de uma forma histórica de produção constitui, todavia, o único caminho histórico de sua dissolução e reconfiguração [Auflösung und Neugestaltung].” (MARX, p. 558; destaques meus)
Mutatis mutandis quanto à relação contraditória do capitalismo com a criatividade: enquanto O capitalismo requer a supressão da criatividade, ao mesmo tempo O capitalismo necessita da inovação para aumentar seus ciclos de exploração.
Grande indústria e agricultura
O avanço da maquinaria instaura o caráter desmedido do capital, antes in potentia, agora in potestate.
O tempo do capitalista desfigura o tempo das estações; a produção de mercadorias exerce uma pressão não-natural sobre o solo e o homem, fissurando o “metabolismo natural-espontâneo” outrora estabelecido. Isso é flagrante, por exemplo, pelo próprio conceito de poluição e lixo (Não existe lixo na natureza]).
“Com a predominância sempre crescente da população urbana, amontoada em grandes centros pela produção capitalista, esta, por um lado, acumula a força motriz histórica da sociedade e, por outro lado, desvirtua o metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o retorno ao solo daqueles elementos que lhe são constitutivos e foram consumidos pelo homem sob forma de alimentos e vestimentas, retorno que é a eterna condição natural da fertilidade permanente do solo. Com isso, ela destroi tanto a saúde física dos trabalhadores urbanos como a vida espiritual dos trabalhadores rurais.” (MARX, p. 572-3)
Em suma, a questão da Alienação do Trabalho:
“Na agricultura, assim como na manufatura, a transformação capitalista do processo de produção aparece a um só tempo como martirológio dos produtores, o meio de trabalho como meio de subjugação, exploração e empobrecimento do trabalhador, a combinação social dos processos de trabalho como opressão organizada de sua vitalidade, liberdade e independência individuais.” (MARX, p. 573)
Também cf. A exploração brasileira ‘até o sabugo’ é um resquício colonial, a exploração capitalista é, de fato, uma exploração, usurpação alheia de vitalidade.
“Assim como na indústria urbana, na agricultura moderna o incremento de força produtiva e a maior mobilização do trabalho são obtidos por meio da devastação e do esgotamento da própria força de trabalho. E todo progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo, pois cada progresso alcançado no aumento da fertilidade do solo por certo período é[,] ao mesmo tempo[,] um progresso no esgotamento das fontes duradouras dessa fertilidade. (…) Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social na medida em que solapa os mananciais de toda riqueza: a terra e o trabalhador.” (MARX, p. 573; grifo meu)
Referências
- MARX, Karl. O Capital. Livro 1: O processo de produção do capital. Boitempo Editorial, 2013.
- MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Boitempo editorial, 2015.
- GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. L&PM Editores, 2010.
- Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (Longa-metragem, 2019)
Footnotes
-
“Se-movente”, que move a si própria. ↩
-
Em certo processo de produção específico, por mais que os tempos atuais queiram emancipar-se da particularidade ao falar de Inteligências Artificiais Gerais. ↩
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“O revolucionamento do modo de produção numa esfera da indústria condiciona seu revolucionamento em outra. Isso vale, antes de mais nada, para os ramos da indústria isolados pela divisão social do trabalho – cada um deles produzindo, por isso, uma mercadoria autônoma –, porém entrelaçados como fases de um processo global.” (MARX, p. 457) ↩
-
MARX, p. 460-1. ↩
-
A força produtiva conjunta é grátis, como uma reação química. ↩
-
Em verdade paga-se o preço dela, que pode até ser menor que o Valor da Força de Trabalho. Pressupõe-se aqui Princípio da Troca de Equivalentes. ↩
-
E que substitua força de trabalho humana, em alguma medida; caso contrário, seria contraproducente utilizá-la. ↩
-
A forma de cálculo destes valores do capitalista individual é a seguinte: p. ex. em uma dada hora, as condições normais são de produzir-se ; contudo, com o uso da máquina, neste mesmo período de tempo produz-se . A massa de valor produzido nesta hora é a mesma, quase por definição, pois estas quantidades estão representando uma quantidade de Trabalho Abstrato igual (trocáveis supondo Princípio da Troca de Equivalentes). Portanto, . Caso – formalmente: quando é arbitrariamente maior do que –, tem-se que , como esperado: “venderia que nem água”. ↩
-
Eu diria que se trata mesmo de inovações tecnológicas, num sentido geral. ↩
-
Que é obtida a partir do ponto em que a maquinaria é empregada na produção de máquinas. ↩
-
MARX, p. 478. ↩
-
“Enquanto o trabalho em máquinas agride ao extremo o sistema nervoso, ele reprime o jogo multilateral de músculos e consome todas as suas energias físicas e espirituais. Mesmo a facilitação do trabalho se torna um meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo.” ↩
-
“Foi preciso tempo e experiência até que o trabalhador distinguisse entre a maquinaria e sua aplicação capitalista e, com isso, aprendesse a transferir seus ataques, antes dirigidos contra o próprio meio material de produção, para a forma social de exploração desse meio.” (MARX, p. 501) ↩
-
“Uma vez alcançado esse limite extremo [de pauperismo], o aumento mais ínfimo nos preços dos meios de subsistência, um desemprego, uma doença multiplicam a miséria do trabalhador e o arruínam por completo. As dívidas se acumulam, o crédito é recusado, as roupas, os móveis mais necessários são recolhidos pela casa de penhores e, por fim, a família solicita sua inscrição na lista dos indigentes.” (DUCPÉTIAUX apud MARX, p. 745-6) ↩
-
Devido à grande massa de indivíduos, “abarrota o mercado de trabalho, reduzindo assim o preço da força de trabalho abaixo do seu valor” (MARX, p. 503). ↩
-
Em alemão, freigesetzt. Pelo Duden, além do uso como “despedir” trabalhadores, também há o uso de aus der bisherigen Bindung lösen (“liberar/soltar do vínculo anterior”). “Liberar” não é a melhor tradução, mas não parece haver alguma tradução tão melhor quanto ela. ↩
-
“…so nicht Dank des schon in Maschinerie verwandelten Kapitals, sondern Dank eines auf dem Arbeitsmarkt neu aufgetauchten” (grifo meu). “Suplementar” é uma péssima tradução; é simplesmente algum capital “novo” no mercado. ↩
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Por mais que seja (muito) debatível o quanto o trabalho de “pedreiro” não seja técnico. Enfim! ↩
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“A manufatura e, em geral, o movimento da produção experimentaram um enorme impulso graças à expansão do comércio ocorrida com a descoberta da América e da rota marítima às Índias Orientais” (MARX & ENGELS, p. 57). Também cf. O tráfico negreiro financiou a Revolução Industrial. ↩
-
“Logo que o trabalho começa a ser distribuído [divisão do trabalho], cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida” (MARX & ENGELS, p. 37-38; destaque meu) ↩
-
“‘Pensareis talvez, senhores’, dizia Karl Marx em 1848, ‘que a produção de café e açúcar é o destino natural das Índias Ocidentais. Há dois séculos, a natureza, que nada tem a ver com o comércio, não plantara ali a árvore do café e tampouco a cana-de-açúcar’. A divisão internacional do trabalho não se estruturou por obra e graça do Espírito Santo, mas através dos homens ou, mais precisamente, como efeito do desenvolvimento mundial do capitalismo” (GALEANO, p. 99) ↩
-
Há casos, como em Cuba, em que decidiu-se inserir-se no mercado como produtores primários, porém com um propósito soberano. Sobre a situação de Cuba pós-revolução de 1959, Eduardo Galeano escreve: “No influxo de uma justa impaciência, a revolução abateu inúmeros canaviais e quis diversificar a produção agrícola num abrir e fechar de olhos: não caiu no tradicional erro de dividir os latifúndios em minifúndios improdutivos, mas cada estabelecimento rural socializado iniciou de golpe culturas excessivamente variadas. Era preciso importar em grande escala para industrializar o país, aumentar a produtividade agrícola e satisfazer muitas necessidades de consumo, que a revolução, ao redistribuir a riqueza, aumentou consideravelmente. Sem as grandes safras de açúcar, como obter as divisas necessárias para tais importações? O desenvolvimento da mineração, sobretudo o níquel, exige grandes investimentos, que estão sendo feitos” (o livro foi publicado em 1971), “e a produção pesqueira se multiplicou por oito graças ao crescimento da frota, o que também exigiu gigantescos investimentos; os grandes planos de produção de cítricos estão em execução, mas os anos que separam a semeadura da colheita obrigam à paciência. A revolução descobriu, então, que havia confundido o punhal com o assassino. O açúcar, que tinha sido um fator de subdesenvolvimento, passou a ser considerado um instrumento de desenvolvimento. Não houve remédio senão a utilização dos frutos da monocultura e da dependência, nascidos da integração de Cuba no mercado mundial, para quebrar o espinhaço da monocultura e da dependência” (GALEANO, p. 112; grifo meu); poder-se-ia debochar desta explicação com que “Cuba não teve outra escolha, no final do dia”, não foi uma escolha “genuinamente livre”. Ora, assim como não há crianças na Amazônia celestialmente convocadas a serem o próximo Dalai Lama, nenhuma decisão é verdadeiramente “livre”, sendo sempre limitada pelas circunstâncias a que se está imerso, nem que sejam elas a mortalidade do corpo ou a finitude do espaço a que se tem acesso. ↩
-
P. ex. Zara admite que houve escravidão na produção de suas roupas em 2011 - Repórter Brasil. ↩