Obs: Para quem já leu esta carta: tem surpresa no final.


Sobre minha saída do Ecoar

Venho por meio desta anunciar minha saída do coletivo Ecoar - Juventude Ecossocialista. Primeiramente, agradeço grandemente à introdução que este espaço me propiciou no marxismo revolucionário e nas discussões ecológicas que pautam o movimento ecossocialista. Sem as formações e discussões com as quais tive contato por aqui, certamente minha visão de mundo seria mais fragmentária e suscetível aos derrotismos individualistas onipresentes na vida cotidiana sob o realismo capitalista hegemônico. Agradeço, em particular, às amizades que pude fazer neste espaço, e que me dão (e às quais dou também) food for thought quanto a novas possibilidades de vida digna ─ algo que me fez falta por muito tempo.

Porém, muitas (muitas) angústias me acometeram desde o começo de 2022, e desde então sempre exerceram influência sobre minha pessoa e, decerto, sobre minhas relações com o coletivo e com seus militantes. Certo está que há fatores externos que me trouxeram muito estresse e desgaste ─ me mudei duas vezes em 2022, tive muito estresse com meu trabalho, solidão e angústias da vida morando sozinho, etc., até a cartada-final do capitalismo ─, mas é indubitável a influência que me foi exercida pelo coletivo em si, dado o destaque que lhe dei em minha vida nestes últimos anos. E sei que não são meros “ofícios do diabo” dentro de minha mente, pois confirmei e compartilhei várias destas angústias (quase ad verbatim em certas vezes) com outros amigos-camaradas. Ademais, para mim se faz claro que este espaço foi algo realmente importante e especial para mim, posto que me resignei a suportar tais angústias por tanto tempo; caso não fosse importante para mim, eu não teria demorado tanto para formalizar minha saída com o compartilhamento dessa carta: eu simplesmente teria saído bem mais cedo e partido para campos mais verdes, sem dar satisfação a ninguém.

Minha principal angústia no último ano e meio neste coletivo foi a sensação de ser ativamente ignorado nas discussões dentro da Coordenação Regional. A analogia que dou é de que minhas falas são vistas como o cronometrar de uma criança que deseja espernear, e a retomada dos assuntos verdadeiramente pertinentes após essa pausa incômoda. Tanto sinto isso pela completa ausência de reconhecimento de minhas falas, quanto pela paulatina ausência de minhas colocações nas relatorias. Não foram instâncias isoladas. Eu entendo que relatorias não são simples de serem redatadas, e que minhas falas podem ser mal-estruturadas em boa parte das vezes (dificultando a redação), mas afinal, qual é o propósito de uma relatoria, senão relatar os posicionamentos dos presentes? E o problema não se restringe ao não-relatar minhas falas; tenho notado há muitos meses (antes de minha saída da CR) essa vista grossa para com minha pessoa nas reuniões.

Desde o convite para que eu compusesse a Coordenação Regional de SP no final de 2021, eu sempre me coloquei como um outsider ─ tanto por ser novo na militância em geral como sendo de um curso de Exatas. Não no sentido de me ver como inferior aos demais membros (mais ignorante sim, inferior não), mas colocando-me no papel de que eu pudesse contribuir ativamente para a proposta tão cara ao discurso deste coletivo de promover a diversidade das vozes: de poder trazer uma outra perspectiva às discussões, em um grupo marcado pela uniformidade das experiências socioeconômicas e de curso1, fatores que tornam um grupo mais suscetível a vieses de confirmação de suas visões de mundo e de ação. Sobre esta questão, dois apontamentos: primeiro, a presença de vieses psicológicos são algo intrínseco à natureza humana, não cabendo atribuições como “bom” ou “ruim” à sua presença. Porém, como reivindicamos a tradição materialista de Marx, é de se esperar que busquemos ao menos reconhecer possíveis fraquezas em nossas análises conjunturais e tomadas de ação, onde possíveis vieses e pressupostos sem comprovação podem exercer influência inconsciente ─ tal ato é o que nós das Ciências Exatas chamaríamos de “método científico”, leia-se, de reconhecer as hipóteses que marcam as tomadas de decisão, de maneira essencialmente racional; marxistas o chamam de método materialista, mas a noção (ao menos aqui) é exatamente a mesma. Em suma: só porque eu acho que “X” seja verdade, não quer dizer que “X” seja verdadeiro ─ o que o comprova não é meu mero achismo, e sim sua comprovação mediante a realidade material; rejeitar tal afirmação é rejeitar a premissa basilar do marxismo.2 Segundo, nunca me coloquei como sendo o detentor da razão, como todos que já me viram fazer colocações errôneas em alguma reunião podem atestar para minha humildade em aceitar correções e de admitir minhas mudanças de posição ante argumentação racionalmente razoável.3

Não pretendo estar 100% correto na discussão abaixo, como pessoas que leram meu texto anteriormente puderam apontar; se há algum valor nesta carta, é nos sentimentos que expresso, e na necessidade ─ urgência ─ de uma discussão verdadeira sobre o estado atual da regional de SP (não pretendo afirmá-lo para as outras regionais, pois não são minha realidade imediata).

Contradições no coletivo

Há algumas contradições que acometem o coletivo. A tradição marxista não trata contradições como repugnantes, e sim como algo fundamental na realidade social. Mas por vezes (se não várias vezes) a militância marxista cai no pecado de amainar seu peso e varrê-las para debaixo do tapete, sem buscar efetivamente superá-las através da crítica e da ação da mudança.

Dentre as que vejo como mais salientes na regional de SP, destaco a questão da responsabilidade pessoal, a questão do Socioambiental (ao menos na regional de SP), a questão da diversidade e, principalmente, a questão da Coordenação Regional.

Sobre o que é responsabilidade

”iv) Devemos buscar formas organizativas capazes de atenuar ao máximo possível as consequências da falta de tempo que atinge boa parte da juventude trabalhadora. Para isso, devemos ter compreensão e solidariedade diante dessa realidade, sem negligenciar a importância da responsabilidade, do compromisso e da disciplina militante na distribuição e no cumprimento de tarefas. É assim que poderemos encontrar saídas coletivas para garantir a contribuição de militantes com maiores limitações materiais e de tempo” (Carta-Programa do Ecoar, seção 3; grifo meu)

O “atraso militante” já é um espaço-comum a esse ponto. Quando se trata de reuniões presenciais, o trânsito e eventuais transtornos inesperados são passíveis de culpa; para reuniões virtuais, também, mas em geral menos. Ou poderiam sê-lo.

Quando uma reunião virtual é marcada, pressupõe-se que o dia e horário mais votado conte com as pessoas que nele votaram. Afinal, eu vou afirmar disponibilidade somente nas opções para as quais eu tiver, de fato, disponibilidade (tanto de tempo quanto de presença efetiva). Parece esdrúxulo reafirmar o óbvio, mas já Voltaire dizia que “o senso comum é o menos comum dos sensos/sentidos”… Além disso, é um senso comum que marcar uma reunião deva ser feito com antecedência; afinal, todos nós estamos em um sistema cujo objetivo primário é capitalizar sobre nosso tempo. Marcar uma reunião com antecedência ao menos me permite organizar minha agenda e ver onde terei espaços livres e onde não os terei.

Atrasos em si não são um problema, quando são pontuais. Quando eles são a norma, e não a exceção, há claramente algum problema. Quando digo que o “atraso militante” é um espaço-comum, pressupõe-se que o seja, em particular, para o militante jovem. Destaco isso pois o tempo assume mais e mais importância conforme envelhecemos; meu tempo quando eu tinha 18 anos não tinha o mesmo “peso” que aos meus 20 anos, e muito menos do que aos meus atuais 25 anos. O motivo é simples: quando somos jovens, temos menos responsabilidades em geral, e por isso tendemos a não valorizar nosso tempo tanto quanto quando começamos a trabalhar ─ em particular em trabalhos assalariados4, comparado com p. ex. trabalho em pesquisa.

Dito isso, o argumento pode ser usado contra mim: há outros militantes que trabalham, e que por isso são passíveis de atrasar em certas reuniões. Pois bem, ao que repito: um atraso aqui e ali de até 5 minutos, tudo bem. Dois atrasos seguidos? Três atrasos seguidos? Atrasos de 15 minutos? De meia hora? Isso já é uma questão de organização de tempo do indivíduo. Quando alguém dispõe do seu tempo para participação de uma organização (militante ou não), supõe-se algum senso de responsabilidade, pois todas as outras pessoas também estão dispondo de seus respectivos tempos livres para isso. Dito isso, sinto um completo desrespeito quando toda reunião em que participo leva ao menos 15 minutos para “começar a começar”. E dizer que “compensamos a reunião acabando 15 minutos depois então” é pressupor que todos ─ou a maioria…─ estão dispostos a fazê-lo.

Pois bem, então abordemos o problema mais amplo: há uma repulsa da responsabilização individual por problemas que sejam (ao menos remotamente) sistêmicos. Embora sejam problemas reais, não são sempre o epicentro da questão. Se eu me atraso porque está chovendo e a CPTM está totalmente parada, ok, isso é um problema sistêmico ─ e eu deveria ao menos avisar os demais sobre meu atraso. Se eu me atraso porque eu fui em alguma festa no dia anterior, dormi tarde e perdi a hora, então o meu atraso não é um problema sistêmico ─ há muitos fatores agravantes, mas o saldo, neste caso, é que o atraso é responsabilidade minha (não é culpa; é responsabilidade). Uma solução paliativa e simples é não marcar presença para dias/horários que tenham muita incerteza. Não tenho certeza se vou conseguir chegar a tempo? Ou não marco presença, ou marco com ressalvas, para que os demais não sejam lesados por meu possível atraso ou não-comparecimento.

Sobre o movimento estudantil

”Do nosso ponto de vista, basta estar disposto a construir coletivamente uma organização que é portadora de um projeto estratégico de emancipação; que, participando dos diversos espaços de intervenção, respeita os encaminhamentos coletivos na sua atuação em territórios, universidades, escolas, locais de trabalho e moradia; e que está orientada pela busca da transformação social radical.” (Carta-Programa, seção 1; grifo meu)

Quanto à questão do caráter diferente entre o trabalho em pesquisa e o trabalho assalariado comum, semi-abro uma caixa de Pandora, à qual me restrinjo a breves pontuamentos para apaziguar o reflexo de protesto do leitor: não digo que pesquisa não seja trabalho, mas eu sei por um fato que o trabalho em pesquisa é mais “poroso” no tocante ao tempo livre do que o trabalho assalariado usual, p. ex. em alguma empresa. Quando estou no escritório, meu tempo ali não é mais meu; as oito horas (no mínimo) que preciso cumprir por dia estão ao dispor dos propósitos daqueles que me contrataram5. Quando trabalho com pesquisa, não consigo delimitar quando é “hora de pesquisar” e “hora de descanso” ─ e embora isso traga a nova problemática de “todo tempo é passível de trabalho” (também à espreita do trabalho em home office), na prática há uma “leniência” maior ao pesquisador quanto ao ócio: eu posso ficar dois ou três dias sem sequer tocar na minha pesquisa (posso, não quer dizer que devo), mas eu não posso sequer cogitar ficar dois ou três dias no escritório rejeitando qualquer demanda que venha em meu caminho sem que venha um belo de um esporro de meu chefe, ou de uma demissão por justa causa.

Me restrinjo a estes apontamentos no tocante à questão de trabalho, sem entrar neste debate polêmico e que distrairia de minha crítica, embora haja logo aí um ponto de contenção dentro da militância como um todo: quando é tão comum marcar manifestações em dias de semana e em horários que a maioria da população está trabalhando (pois a maioria da população do Brasil não é universitária e sequer pesquisadora, mas ainda assim precisa pagar contas), há claramente uma enunciação, em alto e bom som, de quem é o público “ideal” que se espera que compareça e construa tais movimentos ─ porque, como dito acima, não é só da minha vontade de militar que eu vou conseguir militar, e sim (e isso todo militante enche a boca para dizer) depende de minhas condições materiais, e nisso entra o tempo que preciso vender para pagar minhas contas, e que, portanto, deixa de ser tempo livre para outras atividades.

Ora, por que estou falando disso e não do movimento estudantil? Ora, estudantes não trabalham? Eu tive o privilégio de não precisar trabalhar durante minha graduação (além do estágio no último semestre), então não estou me excluindo do seguinte apontamento: é bem claro que a enorme maioria dos militantes mais engajados são aqueles que não trabalham assalariadamente ─ ou seja, que dispõem de mais tempo livre para se dedicar à militância (também pela composição da juventude militante brasileira, majoritariamente composta por estudantes). Normalmente viria a crítica, com um quê de politicamente correto, que “existem muitos pesquisadores que militam, e pesquisadores são trabalhadores”, mas espero que minha diatribe acima exponha minha resposta a essa retórica “autoevidentemente correta”: é muito mais fácil um estudante e/ou um pesquisador (ou seja: alguém que esteja naturalmente presente nos ambientes universitários/estudantis) dispor de tempo para militância do que um proletário stricto sensu (ou seja: alguém que não esteja naturalmente presente em tais espaços universitários/estudantis). A realidade brasileira atual enforça isso sobre nós, e quem trabalha presencialmente pode atestar o quão cheio um metrô pode ficar às 6h da manhã e às 18h da tarde. É necessário lutar contra essa realidade que nos coloca contra a maré da revolução, em particular com propostas de redução da jornada de trabalho ─ que, diga-se de passagem, certos partidos da esquerda revolucionária, tão criticados em comentários informais nos nossos grupos, têm trazido ao debate na época de eleições; em dois anos de coletivo, me parece que é pedir demais que nossos caros militantes deem o braço a torcer sobre decisões acertadas de outras entidades políticas que não sejam do Ecoar/Comuna-PSOL (atual Rebelião-PSOL).

A questão do núcleo socioambiental

Ao fim e ao cabo, o Ecoar ─ ao menos na regional de SP ─ é um coletivo eminentemente estudantil ─ e também, marginalmente, do movimento abolicionista. Os demais movimentos que abriga sob suas asas ou são deixados por si próprios ou, possivelmente, ostracizados.

Já está claro qual é o núcleo mais abandonado nesta regional, e que ironia que seja justamente o núcleo socioambiental de um coletivo ecossocialista. Eu já ouvi dizer que é porque “é o núcleo mais complexo do coletivo” ─ ora, “de cada qual segundo sua capacidade, e a cada qual segundo suas necessidades”, certo? E o núcleo socioambiental, em TODAS as regionais deste coletivo até onde sei, lutou para não colapsar sob seu próprio peso por mais de ano ─ me parece que essa tragédia já era anunciada antes mesmo do desgaste do coletivo durante/após o período eleitoral de 2022, e em particular na regional de São Paulo já era uma realidade desde o recesso de 2021/2022 do coletivo. Em SP, a necessidade de algum auxílio da coordenação regional era um mínimo. Mas já sabemos quem demanda mais atenção e recursos nesta organização.

Colocando dessa forma, porém, pode parecer exagerado: afinal, movimentos de juventude no Brasil tendem a ser, essencialmente, movimentos estudantis. E clarificando o óbvio: não é um problema orbitar em torno do movimento estudantil, especialmente sendo um coletivo de juventude; de fato, seria quase impossível e até contraproducente não fazê-lo. Porém, o tempo não cessa de comprovar o fato de que os movimentos militantes que não tenham conexão com o movimento estudantil estão fadados ao oblívio, na militância de juventude em geral e no Ecoar em particular; têm quase como uma profecia autorrealizante que sua desconexão com o movimento estudantil os tornam fadados a andarem com suas próprias pernas, e de eventualmente tombarem sob o peso de suas próprias atribuições e das necessidades que a vida não cessa de jogar sobre as costas de seus militantes. Na carta-programa está a anunciação (um pouco acanhada, mas aqui e ali) de que este será um coletivo com objetivos mais amplos do que o movimento estudantil; na prática, porém, não consegue desembaraçar-se da tradição da qual (supõe-se) aspira a transcender, e o “pesadelo que comprime seus cérebros” que é esta tradição acaba assombrando a todos os militantes, estudantes ou não.

Pois bem, então que eu me faça claro: o núcleo socioambiental da regional de São Paulo foi relegado, desde sua separação do núcleo abolicionista em 2021, a caminhar com suas próprias pernas, essencialmente sem auxílio da coordenação regional. Às vezes até sinto que estou sendo melodramático quanto a esta questão, mas é complicado quando o núcleo socioambiental não tenha o destaque que ele merece em uma organização que reivindique uma corrente marxista que trate-se “de uma corrente de pensamento e ação ecológica, que faz suas aquisições fundamentais do marxismo ─ ao mesmo tempo que o livra de suas escórias produtivistas” (LÖWY, 2014, p. 44); ou seja, uma corrente marxista cujo “pensamento e ação” são fundamentalmente ecológicos. A Talita Gantus levantou essa bola em nossa roda de debates sobre “O País do Agro é o País da Fome”6 em SP: a questão ambiental não é meramente uma “pauta” dentre várias pautas; é a questão fundamental de tudo, pois (e isso todo militante ecossocialista já ouviu ou falou alguma vez) sem natureza/planeta não existe vida nem capitalismo nem nada.

Na prática, porém, a luta socioambiental na regional de SP é mais um dos recursos retóricos a que se tem acesso, meras frases de efeito: meio ambiente, crise climática, povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos de vez em quando; ocasionalmente a frase pujante de Chico Mendes de que “Ecologia sem luta de classes é jardinagem”, e o famoso “Ecossocialismo ou Extinção”, proferido tão somente com a máxima original de Rosa Luxemburgo em mente. É decepcionante que essa luta tenha se tornado um mero artifício retórico para alguns tantos militantes, posto que temos atuações socioambientais admiráveis nas outras regionais; em SP, parece que temos uma camisa-de-força nos impedindo de engajar nessa luta ─ no caso, eu diria que muito mais relacionado à “influência físico-psicológica” que essa selva de pedra exerce sobre nós (e, por mais “fantasmagórico” que possa parecer, não deixa de ser um sentimento imobilizante real, primo do realismo capitalista). Mas também há de estar relacionado com a rigidez com que ideias “fora da caixa” se defrontam com o pensamento vigente puramente socialista antiprodutivista nesta regional; creio que, se ouvi a palavra “agroecologia” uma vez em qualquer plenária ou reunião geral que fizemos na regional de SP (com outros núcleo que não o Socioambiental), é muito. Inclusive, a resposta imediata e debochada “mas se eu não sou do Socioambiental, não é problema meu”, merece uma resposta também forte: “pois então remova o eco de sua afiliação política”.

Sobre “disputas de espaços”

No final de maio de 2023, fiquei um tanto irritado com o flood de postagens de chapas estudantis de São Paulo no grupo nacional, em particular ficarem puxando listas de engajamento de algo local em um grupo nacional. Se fosse só isso, eu já estaria contemplado com ter silenciado e arquivado o grupo; o que verdadeiramente me incomodou foi que as postagens não pararam sequer quando estávamos no meio das votações do Marco Temporal. Sequer eram propagandas, pois eram compartilhamentos de engajamento interno, demonstrações de luta e de expectativas de vitória dos militantes de SP que eram compartilhada para militantes de outras regionais ─ e, por isso mesmo, não possuíam um cronograma de postar todo dia para mais engajamento, como no Instagram. Custava não ter postado algo quando eu e outras pessoas estávamos postando coisas sobre a derrota iminente (à época, mas ainda perigosamente à espreita), como um “silêncio de respeito” (num grupo interno) por um só dia? Mas claro: prioridades.7

Mas eu entendo bem qual é o motivo para isso: porque se a chapa do Ecoar não propagandeia/engaja por um dia inteiro, quer dizer que todas as outras chapas vão ter “um dia a mais” de propaganda/engajamento na nossa frente. Se não participamos de tal manifestação importante que todas as outras organizações participaram, quer dizer que nós ficamos de fora, não nos fizemos ser vistos. Esse verdadeiro fear of missing out é uma constante em todo esse tempo que estive nesse coletivo, e em verdade é uma fobia herdada do movimento estudantil. Não é como se fosse algo inconcebível, pois para “conquistar corações e mentes” é preciso que faça-se visto. Justo; mas não é como se fôssemos nos fazer importantes única e exclusivamente panfletando em manifestações na Avenida Paulista (certo?). Moramos na maior cidade deste país, e aqui não há escassez alguma de movimentos que precisam de ajuda ─ e que não estão sequer no radar da juventude militante.

No fim das contas, o que falta no repertório da juventude militante é uma noção de “fazer o bem sem ver a quem”; parece que toda a ação que ocorra ao ar livre tem de ter a máxima utilidade possível à visibilidade do coletivo. E ai de nós se participarmos de uma manifestação em que não haja mais nenhuma força de esquerda revolucionária; é quase um contorcionismo mental pensá-lo: afinal, para que participar de uma manifestação, se “ninguém” (de outras organizações vizinhas) vai nos ver manifestando? É quase como se sequer houvesse algum objetivo nas manifestações que não fosse, sejamos honestos, aparecer nas fotos das páginas de notícias do Instagram de esquerda ─ ou, melhor ainda, ser mencionado nos stories dos nossos políticos revolucionários favoritos.

Para quê eu estou escrevendo tudo isso, no fim das contas? Não é como se eu estivesse me sentindo contente com esse sentimento de “cobrança excessiva”. Eu simplesmente preciso exorcizar esses sentimentos de dentro de mim ─ pois são, no fim das contas, sentimentos, pois eu sequer sei se são racionais ─, pois eu sinto que existem tantas lutas que nossa linha política requer que nos engajemos, e jogamos tudo fora e focamos obstinadamente no movimento estudantil. Por quê? Porque “todo mundo o mais” está fazendo isso, e se nós não focarmos, nós vamos “ficar para trás”, nós vamos “comer poeira” dos outros movimentos. Eu imagino que dê até um certo asco ao militante médio pensar em ser um coletivo revolucionário que não tenha interesse em disputar os espaços estudantis ─ porque daí existe uma pecha infamante que o descreveria: autonomista. Está na faculdade e não vai disputar esses espaços!? Vai fazer o que, ajudar as populações de rua? ajudar em hortas comunitárias? ajudar no fortalecimentos dos laços de solidariedade e autonomia de bairros periféricos? Que trabalhos mais invisíveis, que desperdício de militantes!

Sobre a (não-) diversidade

”iii) Nossa organização será composta por pessoas diversas com relação a etnia/raça, gênero e sexualidade. É fundamental buscar garantir instâncias de auto-organização de mulheres, negros/as e LGBTs. Tais instâncias devem funcionar também como mecanismos de fortalecimento destes setores, para dentro e para fora da organização. Também terão o papel de criar as condições para que estes grupos sejam os sujeitos principais da elaboração de políticas de combate às opressões na sociedade e também dentro da organização. Além disso, o fortalecimento destes grupos também melhora suas condições para participar plenamente das formulações políticas gerais da organização” (Carta-Programa, seção 3)

A militância marxista em geral é marcada pela homogeneidade: é majoritariamente composta (particularmente em instâncias “superiores” de direção) por um público branco de classe média com ensino superior em algum curso de Ciências Humanas (completo ou em andamento). O Ecoar, sendo um fruto deste meio, acaba por perpetuar este retrato; negá-lo acriticamente é varrer a questão para baixo do tapete. Há dois problemas aqui: quantos militantes fora deste perfil entram no coletivo, e quantos fora deste perfil acabam saindo do coletivo. A questão não é tão simples quanto deixar mais e mais pessoas entrar no coletivo, pois pode haver (e acredito que há) um problema de retenção de militantes. Caso haja este problema na organização, cabe averiguar a raiz de suas causas, e lidar com elas efetivamente, não em um discurso pseudo-derrotista de “a causa é o capitalismo”.

Sobre a baixa entrada, em particular, de indivíduos negros na regional de SP, para mim é bem claro: o público usual de atividades no Parque Augusta, Avenida Paulista e em universidades públicas/particulares, por serem ambientes de pessoas com perfil de poder aquisitivo maior, tenderá a ser de perfil mais branco: qualquer um que está neste coletivo sabe que a maioria da população das periferias é negra, e que, reciprocamente, a maioria da população negra mora nas periferias8; afirmar que fazer atividades fora da periferia estará fadado a ter poucos participantes negros (e, portanto, menos possíveis novos militantes deste perfil) é uma conclusão imediata de um conhecimento básico da militância. Quanto à retenção de pessoas negras, trans, neurodivergentes9 e/ou PCDs (conforme uma carta de desligamento recentemente postada no grupo nacional), me parece que são as mais suscetíveis a se afastar da militância, e digo isso baseado em minha breve experiência de dois anos de Ecoar. Sinto que um dos principais motivos é subjetivo mas bem real: sentimento de não-pertencimento. Haja paciência de estar em um espaço majoritariamente branco (e cis), com piadas brancas e discursos e ideais brancos, sendo não-branco.

Eu adiciono mais uma categoria que é completamente esquecida nesse cômputo: pessoas de cursos fora das Ciências Humanas. “Boo-hoo” é a reação que eu espero de quem está lendo; que pena, quem está escrevendo sou eu, e eu escolho trazer esta angústia minha para a conversa porque acho pertinente não só de minha parte, mas também para outras pessoas que sintam o mesmo, e até mesmo para o coletivo como um todo. A sociedade é uma totalidade concreta, até aí todos concordamos; por isso, precisamos ouvir pessoas que estejam na “outra margem do rio”, quando se trata de áreas do conhecimento ─ o qual também é uma totalidade, e cuja cisão Ciências Humanas/Exatas/Biológicas já é arbitrária para começo de conversa!

Um argumento contrário que viria em minha direção é: um Físico não sabe marxismo, logo eu não preciso escutar a opinião de um Físico sobre marxismo porque não é a área de estudo dele. Certo, se for assim, então vamos vestir logo a camisa de socialistas utópicos de uma vez e pregar somente para quem estiver em faculdade com nota MEC acima de 410. De fato, não é a democracia um espaço em que todos, não importa sua formação ou posição socioeconômica, têm voz?

Pois bem, então suponhamos que decidimos que é importante ter pessoas de cursos fora de Humanas no coletivo, ótimo! Como conseguimos isso? Vindo da Física, eu afirmo categoricamente: não da forma que está sendo feito hoje! De todos os ranços que se pode ser do estereótipo de militante, um dos mais verdadeiros me parece ser o da pessoa que só quer falar e não quer ouvir. Por isso digo: Ouçam-nos! O estudante médio de Exatas tende a não ser tão politizado11 quanto o estudante médio de Humanas, mas isso não quer dizer que eles têm menos coisas a dizer. Quanta coisa se pode aprender com um estudante de Exatas sobre argumentação lógica, e sobre evitar fazer suposições baseadas em conhecimentos dos quais não se tenha clareza ─ ou seja, tudo o que o estudante médio de Humanas odeia, e que poderia torná-lo ao menos reconhecido por argumentações mais convincentes.

Sobre o deboche com relação a outras organizações nos grupos

Eu pensava que só eu não gostava dessas brincadeiras idiotas com relação a outras organizações militantes nos nossos grupos de Whatsapp ─ até recentemente. Tenho comentado sobre isso com outras pessoas do coletivo, e aparentemente é algo mais comum do que eu sabia: a toxicidade do Twitter militante frequentemente se infiltra nestes grupos. Que fosse nos grupos de descontração e rolês, tudo bem; nos grupos regionais e nacional, é mais problemático.

Ao que eu vejo, a causa primeira desses compartilhamentos nos nossos grupos é bem simples: as pessoas querem interagir umas com as outras, e geralmente não conseguem ver outra forma senão compartilhando algo de seus espaços-comuns ─ que (infelizmente) envolvem o Twitter, o lugar mais saudável da militância marxista brasileira. Esta causa explica esta atitude, mas não a justifica. A consequência que tenho visto, desde que entrei em 2021, é que nossos grupos de Whatsapp ─ ao menos na regional de SP, e todos sabemos qual em particular ─ comumente degeneram-se em espaços tóxicos em que não consegue-se (a bem da verdade: não quer-se) contemplar estas outras organizações senão com ironia ─ e quem contempla algo com ironia, contempla-o com senso de superioridade, de cima para baixo, e, portanto, sem dever algum de tratá-lo como merecedor de justo julgamento12. E acho de muito mal tom que alguém se atreva a responder dizendo que compartilhou um tweet de alguém da organização XYZ para “fins educativos”, para “denunciar” suas hipocrisias ─ o objetivo principal de compartilhá-lo é a risada, não a análise; afinal, todos imaginamos quão efetivo é dar uma aula num grupo de Whatsapp ─ ou seja, não é por esse motivo que se compartilha essas coisas nos grupos. Coisas que se aprende através da risada dificilmente são aprendidas criticamente, mas deixo a quem seja da Educação para elaborar quanto a isso.

Obviamente tais atos não devem ser censurados ou proibidos. Não cabe a mim o que vocês farão/deveriam fazer quanto a isso, mas meu chute é: como são ações individuais, a responsabilidade é, sim, individual. Tenho consciência do quão “careta” é elaborar este ponto todo, mas é um ponto que passo a ver como importante, e não só para mim: esses deboches são algo que arrisco a dizer que a maioria dos membros não se sente confortável de “ser forçada” a ver. A resposta “não abram os grupos então, abram eles depois” é um lavar de mãos à possibilidade de que tantas pessoas não se sintam confortáveis nos espaços comuns deste coletivo, e supõe que 1) haja um “depois” e 2) que a pessoa queira “dar as caras” novamente num ambiente que lhe aparente ser, de cara, hostil. No fim e ao cabo, há algumas perguntas simples para aqueles que postam estas coisas nos grupos: “podem existir pessoas que não gostem que eu poste isso aqui?”, “qual é o efeito de eu postar isso aqui?”, “eu preciso mesmo postar isso aqui?”, etc.

Sobre a coordenação regional de SP

”O fato das elites serem informais não significa que sejam invisíveis. Num encontro de um grupo pequeno, qualquer um com um olhar aguçado e um ouvido atento sabe dizer quem está influenciando quem. Os membros de um grupo de amigos vão se relacionar mais com pessoas do seu grupo do que com outras. Eles ouvem mais atentamente e interrompem menos; eles repetem os argumentos dos outros membros e cedem amigavelmente. Eles tendem a ignorar ou a enfrentar os ‘de fora’ cuja aprovação não é necessária para se tomar uma decisão. No entanto, é necessário para os “de fora” manter uma boa relação com os ‘de dentro’. É claro que as linhas não são tão bem definidas quanto as que eu tracei. Elas têm nuances de interação e não são roteiros pré-concebidos. Mas elas são discerníveis e têm o seu efeito. ” (A tirania das organizações sem estrutura ─ Jo Freeman; grifo meu)

Foi necessário sair da Coordenação Regional de SP para ver o quão fosca ela é. É só olhando de fora de seu grupo de Whatsapp que eu começo a perceber que eu nunca consigo saber quando eles estão tendo reuniões (se estão tendo reuniões), quais são os temas, quais são as decisões, se eles têm consciência sobre os estados dos núcleos (que é uma de suas responsabilidades), etc. Quando se tem acesso às atas (via grupo de email), é um luxo ─ um luxo de posse, não de compreensão, pois mais são pontuações que, de fato, uma relatoria. Há anos eu tenho a dúvida sincera de o que é uma relatoria?, desde que (até onde lembro) falamos disso na primeira plenária eleitoral de 202213.

Sei que é delicado criticar relatorias, pois é o equivalente moral de xingar o desenho de uma criança ─ ela está tentando, pelo menos! ─, mas que jogue a primeira pedra quem nunca leu uma monitoria e saiu com mais dúvidas que respostas. Digo-o pois se faz necessário destacar: a CR ─ mais explicitamente: os membros da CR ─ possui responsabilidades para com a regional que representam, e para que tenha-se a tão aclamada democracia direta, precisa-se de transparência ─ e isso não tem bastado em absoluto com as “relatorias” que são enviadas a todos (muito) tardiamente por email. Ora, quando eu denuncio, em particular, que minhas falas não foram, em certas instâncias, anotadas, então abro um leque enorme de suspeitas: como confiar numa relatoria de algo que não presenciei? Quem garante que ela seja suficientemente fidedigna? E aqui requer-se, de novo, transparência: o que é uma relatoria? Como posso reconhecer uma boa relatoria? Quais fatores são indispensáveis a uma (boa) relatoria? E talvez mais importante: quando uma relatoria é inaceitavelmente vaga? Por isso eu não cobro que “façam relatorias melhores”; eu cobro que esclareça-se o que é uma relatoria, para começo de conversa, para que faça-se claro, por si só, quando uma relatoria cumpre seu propósito de fato e quando não.

Uma solução simples e indolor é o que propus na 1ª Plenária de 2023, no momento de balanço14: “disponibilizem os links das reuniões da CR no grupo regional, para que sejam abertas a todos”. Em primeiro lugar, isso é o mínimo que uma organização transparente faria; concordam que é esquisito se eu falar “a coordenação regional do coletivo XYZ faz reuniões entre quatro paredes e ninguém de fora sequer sabe quando eles vão se reunir para conversar, e só sabem do que é discutido por fofoca ou semanas depois”? Por que não o seria para o Ecoar? Segundo: um dos argumentos contrários foi de que “ninguém entra nas reuniões abertas, vide caso da CN”; ora, pois bem, então qual é o problema de fazê-lo? Terceiro: houve alguma resposta do tipo de que “as reuniões poderiam perder o foco com tanta gente” ─ o que já contradiz o apontamento anterior, mas pois bem, vamos entretê-lo: caso a CN já tenha tido algum caso deste tipo, então eles tiveram de lidar com esta situação, e suponho que essa experiência possa ser trazida para que a CR possa saber o que fazer… e no fim das contas este argumento é um mero espantalho15, pois sequer existe militância orgânica suficiente participando em seus respectivos núcleos, quem dirá em reuniões da CR na qual não pertencem. Me parece bem desleal querer remover a transparência de um processo deliberativo tão importante da regional, baseado em cenários hipotéticos e improváveis.

Além disso, a CR é maior em tamanho do que a maioria dos núcleos de SP. Além disso, aglutina os “melhores” (leia-se: mais orgânicos) militantes destes espaços ─ o que quer dizer, para um núcleo pequeno, a maioria de seus participantes. Ocorre algo perturbadoramente similar às críticas que temos à participação de políticos em cargos governamentais: quem está dentro da CR, por assim dizer, “perde o poder” de criticá-la efetivamente. O que vi ao longo dos meses foram críticas não mais que “sussurradas”, “críticas de corredor”, pois quem terá a coragem de fazê-lo em alto e bom som? Eu tive a ignorância de fazê-lo enquanto dentro da CR, e eis-me aqui, após ser lançado silenciosamente em ostracismo. Um de meus melhores amigos (fora da militância) me disse recentemente que “ouvir alguém é reconhecer e permitir sua existência”. Pois bem…

Conclusões

”Se quisermos transformar o mundo, temos de ser capazes de elaborar uma estratégia e uma tática, e o que são a estratégia e a tática senão o fruto da análise de uma realidade objetiva?” (Marta Harnecker)

Em suma, não consigo ir embora sem ser com um gosto amargo. Um coletivo que tanto me instigou à pesquisa e ao conhecimento, ao fim me causa ansiedade e até desagrado e angústia pela condescendência que frequentemente vejo manifestada nos grupos.

No fim das contas, falta seriedade aqui, falta maturidade, e sinto muito forte a reação de que estou cobrando demais ─ e por isso mesmo escolho sair deste coletivo. Quando vejo uma indisposição para com um senso de responsabilidade pelos “cargos” assumidos; quando vejo uma soberba tão grande para com outras organizações mas uma subserviência tão infantil a certos políticos de estimação16, e ao mesmo tempo uma ausência quase-completa de autocrítica sistemática (pois não basta que ela ocorra ocasionalmente, em reuniões de menos de duas horas e através de falas de três minutos); quando sinto que preciso sair da Coordenação Regional não pelo sentimento de desprezo para com minha pessoa, mas por indiferença, por frieza; quando só percebo, já fora da CR, a completa obscuridade na qual o resto da regional inteira encontra-se referente às decisões de sua “cúpula” ─ são coisas demais, e eu mereço mais que isso. Eu mereço algum lugar em que eu possa contribuir com minha voz e com meus talentos, e em um lugar onde eu sinta que as pessoas sejam mais intelectualmente honestas ─ não ingênuas de cair em relativismos, mas honestas de admitir quando seus adversários políticos (e até mesmo seus aliados políticos!) estão certos quando estiverem certos. A verdade não possui fã-clube.

Se é para sofrer voluntariamente, que seja por algo que edifique; se é para discutir com alguém, que seja com quem esteja disposto a ouvir. E por isso escolho compartilhar este texto a todos deste coletivo, este texto que me levou muitos meses para amadurecer e finalizar: é para aqueles que sentem algo errado no ar, e que sentem angústia por não conseguirem expressar adequadamente esse aperto no estômago; para quem sente que possui o ímpeto da criação revolucionária e que não quer vê-lo morrer em seu âmago; para quem teve a mesma animação que eu tive há dois anos atrás, de confrontar seus próprios preconceitos de peito aberto e sempre em busca da verdade comprovável ─ e que não quer vê-la perecer ante à rigidez de seu ambiente.

Se há alguma coisa que merece investigação neste texto, creio que sejam dois pontos: a clareza tanto do horizonte emancipatório17 que queremos, quanto dos “passos” concretos que precisamos fazer para rumar nesta direção; e a busca de algum “sistema” que permita a concretização deste plano, via discussão e construção colaborativa coletiva entre militantes dentro deste espaço. Digo sistemas no sentido da frase de James Clear, de quem vem a frase famosa de que “não subimos ao nível de nossos objetivos; descemos ao nível de nossos sistemas”18. Não digo sistema num sentido burocrático e inflexível, mas sim algo que instiga e sustenta as ações, que as orienta e lhes dá coesão rumo ao horizonte programático do coletivo. Quantos gênios passarão despercebidos por não terem desenvolvido os hábitos que permitiriam que pudessem desenvolver seus dons? Analogamente, quantos militantes deixarão a militância por terem ingressado em espaços que não fomentassem efetivamente a atividade coletiva?

Por isso creio que minha crítica esteja além da “cobrança individual”: creio que o problema seja o ambiente dentro do coletivo, o qual vejo claramente como sendo herdado “de fora”, da militância/dos espaços estudantis. É uma relação dialética, por assim dizer: da mesma forma que somos moldados e moldamos a sociedade, somos moldados e moldamos o coletivo; cabe aos militantes averiguar com seriedade, sem pudores moralistas, qual é caráter do ambiente em que estão imersos, e como ele pode/deve ser modificado ─ através da ação consciente/práxis─ para que seja um condutor dos comportamentos que esperamos numa sociedade comunista/ecossocialista (pois qual seria o “ambiente de testes” mais apropriado para tais projetos de sociedade pós-capitalistas do que as organizações revolucionárias?). E imagino que este parágrafo inteiro seja riscado como “pretensão de mudar o mundo só mudando a si mesmo”, mas creio que haja uma verdade aqui que a soberba da militância marxista impede de reconhecer, pois, assim como a ação sem teoria é cega, a teoria sem ação é um mero jogo intelectual.

A quem permanece, desejo sorte, e acima de tudo: desejo a audácia ao diálogo, como um primeiro passo para que este seja um coletivo de todos e para todos.

Nicholas Funari Voltani
06/07/2023

Posfácio: Cinco meses depois…

”Falar é agir; uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência. Nomeando a conduta do indivíduo, nós a revelamos a ele; ele se vê. E como ao mesmo tempo a nomeamos para todos os outros, no momento em que ele se , sabe que está sendo visto; seu gesto furtivo, que dele passava despercebido, passa a existir enormemente, a existir para todos (…).
Depois disso, como se pode querer que ele continue agindo da mesma maneira? Ou irá perseverar na sua conduta por obstinação, e com conhecimento de causa, ou irá abandoná-la. Assim, ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir.” (Jean-Paul Sartre, Que é a literatura?)

A carta acima foi jogada no grupo nacional do Ecoar em julho. Ela não foi postada publicamente por respeito aos militantes que permaneciam, e por se tratar de “lavar roupa suja dentro de casa”. A reação: aos que sentiam o mesmo que a carta expôs, um sentimento de “empatia compartilhada”; aos que serviu a carapuça, as costas.

Pena que os gansos selvagens voam juntos. Com o débâcle que foi o Encontro Nacional ─ ironicamente ou não, na semana do feriado de Finados ─ e a consequente debandada de uma quantidade substancial de militantes ─ ao menos dezessete militantes assinaram uma carta coletiva de desligamento, postada no grupo nacional ─, e depois de tantas atrocidades que já escutei sobre esta organização com síndrome de Golias, que se acha enorme e que crê piamente que o que vem “de baixo” não os atinge ─ com tudo isso, não consigo me manter quieto. Todas as ilusões deste “coletivo” desfizeram-se em puro ar nestes últimos meses; seus reis estão nus e proclamam: “l’Etat est nous”.

Não sinto mais este pudor que me impediu de publicá-la abertamente em julho deste ano; a carta coletiva que foi publicada recentemente foi lançada publicamente (em stories no Instagram) por um motivo: por tratar-se de um “coletivo” que encha tanto a boca para falar de “democracia direta”, mas que seja tão afeito a tolhê-la sem dor alguma na consciência. E de que as reações imediatas às cartas de desligamento (cartas, no plural), de mais de dez páginas cada, tenham como reação 1) “não li mas já discordo” e 2) “vida longa ao Ecoar”… não é somente desrespeitoso; sequer merece ser chamado de teatral. É simplesmente patético. Não há outras palavras19. Não, não, não, eu VOU focar no vida longa ao Ecoar. Vida longa ao Ecoar! Uau! Você queria parecer autêntico escrevendo isso depois de uma crítica tão extensa da estrutura burocrática de poder que te sustenta!? “Tomamos suas críticas em notas e vamos nos esforçar para tomá-las em conta em nossas próximas discussões onde for cabível etc etc. A propósito: Vida longa ao Ecoar!” Existe algum imbecil que leu essa resposta e pensou “é isso aí! Vida longa ao Ecoar! Fora com esses autonomistas que escreveram três cartas de crítica com mais de 10 páginas cada uma!“? Ao menos de teatro eu achei que vocês tivessem aulas melhores no ensino privado. Precisamos mesmo tornar o ensino público, urgente! Vocês consideram-se mesmo um império que outorga vida longa a si próprio? Império do Bairro do Limoeiro, só se for! Mas que seja, o que lhes ajude a dormir melhor de noite. Ah, mas o Ecoar vai conseguir eleger mais um político! Temos certeza que essa pessoa vai levar o nome do “coletivo” por mais de três meses depois de sua eleição sem sair para um partido com mais verba e influência!20

É difícil levar a sério toda essa ladainha de ser um “espaço aberto ao diálogo” (uma afirmação bem superficial, à la cartas de repúdio) quando, no mínimo, três cartas são tratadas como fraldas a serem descartadas com nariz tampado, como se houvessem gênios do mal tão desocupados ao ponto de quererem dinamitar um “coletivo” pífio tanto em envergadura quanto em organicidade. As peças não estão encaixando, e não será forçando-as ao formato que se espera que elas acabarão se encaixando. Como regra geral, não há diálogo enquanto (ao menos) uma das partes não esteja aberta a “perder”, a deixar-se convencer, a abrir-se à possibilidade de mudar suas convicções e agir diferentemente. Surgiu organicamente um espaço assim, no qual houve um mínimo de comiseração e troca de afetos, compartilhamento de angústias e de violências sofridas, só para logo ser tratado, pela direção, quase como se fosse uma reunião de terroristas ─ a princípio, puramente por ser um espaço “extra-oficial”, como se isso fosse um crime! Como se vocês só conversassem única e exclusivamente nos grupos “oficiais”!

Que palavras não sejam poupadas: o Ecoar é o que seus dirigentes deixam-no ser; o que não deixam-no ser, o Ecoar não possui chance alguma de ser. O Ecoar sequer é eco, e a piada faz-se sozinha: resta somente “ar”, e em particular militantes com ares de inabalável grandeza e sabedoria militante. No fim e ao cabo, seus dirigentes são genuínos gerentes: burocratas que sentam-se em seus tronos imaginários e comandam seus lacaios a fazerem o que precisa ser feito ─ e a fazer não mais do que isso. Aos seus militantes que engajaram-se em movimentos agroecológicos, desdém e nojo de que ficam “mexendo na terra”; aos que engajaram-se no movimento abolicionista, apoio à Marcha da Maconha e promessas vagas de “não deixar o grupo morrer de novo” após a Marcha; mas para quem engajou-se no movimento estudantil, todas as amarras caem por terra e, de repente, há um apoio ─ e até mesmo um reconhecimento ─ de suas respectivas coordenações regionais e, caso milite o suficiente, quem sabe até mesmo da coordenação nacional. A frase que eu disse como uma mera hipotética à época, em minha carta, mostrou sua face elitista inteira durante o Encontro Nacional:

“Eu imagino que dê até um certo asco ao militante médio [da direção do Ecoar] pensar em ser um coletivo revolucionário que não tenha interesse em disputar os espaços estudantis ─ porque daí existe uma pecha infamante que o descreveria: autonomista. Está na faculdade e não vai disputar esses espaços!? Vai fazer o que, ajudar as populações de rua? ajudar em hortas comunitárias? ajudar no fortalecimentos dos laços de solidariedade e autonomia de bairros periféricos?
Que trabalhos mais invisíveis,
que desperdício de militantes!

Vocês, daí de cima das suas escadinhas de plástico, muito têm nos acusado de “pessoalismo” e de “críticas individualizadas”. Ora, que engraçado que críticas sem menção de nomes sirvam-lhes tão bem de carapuça ─ o que quer dizer que elas talvez não estejam tão distantes da verdade21. Eu rebato essa crítica para vocês da direção (e vocês sabem bem quem vocês são): que tal vocês fazerem um debate sobre os problemas apontados, e não sobre os “vilões” envolvidos? (Mas façam-no entre si mesmos, pois o problema é de vocês. Esta carta aqui é meu expurgo pessoal de todos os inconvenientes que me acometeram por conta desta organização. Usem-na como lhes aprouver, como autocrítica ou como crítica crítica.) Outra dica, já que estamos nessa: que tal vocês pararem para escutar, e deixar suas falas pra depois? Sabe, como o texto de Paulo Freire que foi leitura da primeira Plenária Eleitoral de São Paulo em 2022:

“No Brasil, tá cheio de gente falando pra gente, mas não com a gente. (…) O terrível é ver um montão de gente se proclamando de esquerda e continuar falando ao povo e não com o povo, numa contradição extraordinária com a própria esquerda.” (grifo meu)

Não há ─ até onde eu sei! ─ um só militante neste “coletivo” que esteja pagando suas contas pela remuneração recebida pelo serviço e tempo dedicado a este espaço; ou seja, toda sua dedicação foi voluntária. Ao mesmo tempo, tal tempo está sendo dedicado (supostamente) na construção “coletiva” de um espaço que produza as características que desejaríamos numa sociedade pós-capitalista, em particular democrática, justa, aberta, transparente. Se vocês querem pessoas que dediquem uma parte não-desprezível de seu tempo de forma voluntária, mas que suportem quietas suas angústias do ofício, então ou virem uma ONG ou um culto, o que lhes aprouver melhor ─ e já sabemos para qual lado este pêndulo pende mais.

Entendam uma coisa: vocês não são tão importantes assim. Vocês são uma organização de juventude que adotou uma linha autoritária quase que sub-reptícia, ao ponto de conseguirem desmantelar qualquer organicidade que surgisse e que não estivesse de acordo com o seu livrinho oculto de regras. Se vocês ao menos fossem mais cândidos com o que vocês querem abarcar, seria uma dor de cabeça infinitamente menor para todos os envolvidos; se é movimento estudantil que vocês querem construir, então vão logo, invistam todas as fichas nisso de uma vez e desfaçam-se de tudo que seja minimamente contingente ao seu objetivo ─ porque vocês sabem que nos tratam como se fôssemos pesos-mortos. E não me venham com a desculpinha de que não podem agir assim porque são “ecossocialistas”, porque todos sabemos que isso é ─ e agora não vou maquiá-lo ─ um puro branding que vocês adotaram para diferenciarem-se das demais organizações: as cores, a identificação política (um “crachá”), algumas frases de efeito e alguns autores canônicos.

Por fim, uma citação que levo muito no coração, de uma referência mundial do movimento ecológico ─ o qual nem espero que militante algum desta organização anti-socioambiental conheça:

There are no unsacred places.
There are only sacred places,
and desecrated places
.” (Wendell Berry)

A responsabilidade de uma opressão nunca deve recair sobre seus oprimidos. Todo oprimido tem, no mínimo, o direito de rebelar-se contra sua opressão, e de fazê-lo justificadamente. Que deixe-se registrado: quando há divergências políticas, o espaço é para o debate; quando há sofrimentos e violências envolvidos, o espaço é para o acolhimento ─ e quando não há espaço para o acolhimento, e em particular quando este espaço é ativamente rechaçado por motivos políticos, revoltar-se torna-se o direito do oprimido. O fato de que tais gritos de revolta, não só de divergências políticas mas de violências sofridas, foram abafados pela coordenação nacional (e por seus tentáculos de coordenações regionais) pela desculpa de serem “puramente subjetivos” ─ mesmo quando um terço do coletivo inteiro concorda quanto ao caráter destas violências sofridas! ─ são algo completamente revoltante, atos injustificados para qualquer organização que reivindique-se revolucionária e que não queira contaminar-se pela “reprodução das opressões que pretendemos combater”22 ─ certo!?

Encerro aqui este capítulo da minha história em um lugar que não mereceu nem minha presença e nem minha atenção. Que democracia é essa sem a voz do povo? Que democracia mais convenientemente aristocrática!

Nicholas Funari Voltani
03/12/2023


Referências

Footnotes

  1. Todos na Coordenação Regional de SP são de cursos de Humanas, ao menos no período em que fui membro; atualmente o Rafael Diniz faz as vezes do “cara de Exatas” em meu lugar. Dizer que isso é uma questão fútil e que não traz pontos-cegos à Coordenação Regional é arrogância, e subrepresentação destes indivíduos na regional.

  2. E, em particular, dizer “mas outros coletivos marxistas também caem nesse erro” é um puro lavar de mãos: só porque eles pulam a ponte metafórica, não quer dizer que nós devamos fazê-lo também ─ em particular se tem-se alguma pretensão de ser um movimento de vanguarda.

  3. Aliás, quem sabe até se não tenha sido justamente tal comportamento de humildade intelectual que tenha rebaixado minha imagem enquanto militante aqui dentro?

  4. No sentido marxista de um trabalho em que seja explicitado o tempo de trabalho ─ ou seja, que requeira “bater ponto” ou cumprimento mínimo de horas, vide elaboração na seção seguinte do texto.

  5. Isso em particular para trabalhadores CLT; trabalhadores PJ ou mesmo sem carteira são casos ainda mais cobrados por tempo de trabalho.

  6. A quem interessar, um resumo de minha apresentação dessa roda pode ser encontrado aqui.

  7. O parágrafo que escrevi anteriormente era bem mais cáustico do que este; alterei-o por respeito a amigos. É um parágrafo inútil, a não ser por puxar os pontos do parágrafo seguinte, e por ser algo que me incomodou bastante à época. Inclusive, obviamente não estou criticando a equipe de Comunicação, tanto porque o que me incomodou não veio de gente da Comunica.

  8. Ambas estas conclusões lógicas não são trivialmente equivalentes: “estar chovendo implica que há nuvens no céu” não é o mesmo que “haver nuvens no céu implica que está chovendo”; neste exemplo, a primeira implicação é verdadeira (chuva requer nuvens), mas a segunda, sua recíproca lógica, não é verdadeira (pode estar nublado mas não chovendo).

  9. Quanto a isso: desejo o maior sucesso à futura Frente Neurodivergente deste coletivo! Há muito potencial e muitos militantes incriveis!

  10. ”De fato, os socialistas ‘utópicos’ (seguidores de Saint-Simon, Owen, Fourier e outros) tratavam de mostrar-se tão firmemente convencidos de que a verdade bastava ser proclamada para ser instantaneamente adotada por todos os homens sensatos e de instrução, que inicialmente limitaram seus esforços para realizar o socialismo a uma propaganda endereçada em primeiro lugar às classes influentes ─ os trabalhadores, embora indubitavelmente viessem a se beneficiar com ele, eram infelizmente um grupo retrógrado e ignorante” (HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções (1789-1848). 9ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 265)

  11. Ao menos não na militância per se.

  12. A quem responder com “mas Marx usava ironia em seus textos”, respondo: ele ironizava, e depois explicava seu ponto.

  13. Onde eu me lembro que foi mencionado, mas não lembro palavra, e, ironicamente ou não, não é sequer mencionado na relatoria do evento.

  14. Eu referiria o leitor à relatoria da reunião, mas adivinhem só onde estão minhas falas no tocante a este ponto?

  15. Falácia do espantalho – Wikipédia, a enciclopédia livre.

  16. Um dos quais recebe mais agradecimentos que Alan Turing.

  17. Mais utópico no bom sentido do termo, de colocar-se a imaginar uma nova realidade, possível e desejável.

  18. Não me importo se 7 páginas de crítica forem canceladas por causa de uma única citação de um autor de desenvolvimento pessoal; a ideia ainda é relevante. Para quem preferir a frase original de Arquíloco: “Não subimos ao nível de nossas expectativas, descemos ao nível de nosso treinamento”.

  19. Mentira, tem sim! É cringe.

  20. Primeiro como tragédia…

  21. Há uma carta que possui menção de nomes, mas sinceramente, quando se coage um militante a excluir um de seus próprios tweets, é pedir demais que cobrar-lhe de ser cortês em suas críticas ─ o que este militante foi, ao contrário de mim.

  22. Por uma rebelião ecossocialista no Brasil. Aliás, ainda estou para encontrar alguém que estivesse satisfeito com a escolha desse nome totalmente sem sal para uma organização política. Pelo menos não foi “Democracia Ecossocialista”, certo!? Enfim!