1. O que é agronegócio?

Antes de comentarmos sobre a relação entre agrotóxicos e fome, convém vermos sobre o que se trata quando se fala a buzzword “agronegócio”. De acordo com a própria definição originária de agribusiness de um de seus criadores na Escola de Negócios de Harvard, John H. Davis1

”Por definição, agribusiness significa a soma de todas as operações da fazenda, mais a manufatura e a distribuição de todos os insumos de produção agrícola providos pelos negócios, mais o total das operações realizadas em conexão com a manipulação, a estocagem, o processamento e a distribuição das commodities agrícolas.
Em suma, agribusiness refere-se à soma total de todas as operações envolvidas na produção e distribuição de alimentos e fibras.”
(Davis, 1955, apud Pompeia, p. 48)

Dentro dessa “totalidade” agroindustrial, o agribusiness assenta-se sobre o “tripé” (na obra seminal de Davis e Goldberg, “primary triaggregate”):

  1. Funções “antes da porteira” (tecnicamente: funções “a montante”): Consiste em serviços para a produção agropecuária; é o ramo da indústria produtor de insumos agrícolas ─ fertilizantes, pesticidas (i.e. agrotóxicos), sementes transgênicas ─, máquinas agrícolas, assim como as funções financeiras de crédito rural. Em termos marxistas, pode-se dizer que são os fornecedores dos meios de trabalho da produção agropecuária.
  2. Funções “dentro da porteira”: Consiste na própria produção agropecuária, grandemente baseada na produção de soja, milho, boi gordo, entre outros.
  3. Funções “depois da porteira” (tecnicamente: funções “a jusante”): Consiste em atividades relacionadas à agroindustrialização e comercialização de itens advindos da produção agropecuária; trata-se do ramo de armazenamento, processamento, industrialização, transporte e distribuição das commodities. Em termos marxistas, são responsáveis pela circulação das mercadorias da produção agropecuária, embora também incluam indústrias que gerem mercadorias a partir da matéria-prima advinda dessa produção prévia.

Dessa definição, já pode-se ver que:

  1. Agrotóxicos compõem somente uma parte desse “complexo agroindustrial”, e, portanto, são somente uma parte do problema da fome (em particular no Brasil).
  2. Agronegócio não se trata somente de latifundiários buscando mais terras através de litígios via armas e alterações da legislação; é algo mais amplo e complexo, do qual os produtores agropecuários são somente uma parte integrada.

”A arte ou ciência de cultivar o solo é apenas mais um elo da cadeia que alimenta e veste as pessoas. Essa cadeia começa muitos empregos antes de chegar à fazenda e continua por diversos processos depois que os alimentos e as fibras produzidos saem pelo portão da fazenda. Para todo esse complexo de funções de produção e distribuição agrícola, algumas pessoas usam o termo agribusiness.”
(Butz, 1960, apud Pompeia, p. 57)

2. Como o agronegócio é gerador da fome?

“a realidade é que o agribusiness, longe de ser a solução, apenas agrava o problema da fome. Isso porque dele advêm não apenas a modernização da agricultura, mas a transferência de um modelo de desenvolvimento econômico e de relações sociais para o Terceiro Mundo ─ o modelo capitalista de produção.
Dessa forma, o agribusiness apenas exacerba as desigualdades sociais que (…) são as causas reais da fome.” (Burbach & Flynn, 1980, apud Pompeia, p. 79; grifo meu)

Vê-se que a fome é uma consequência desse projeto político-econômico que acompanha o alastramento da ideia do agribusiness, dos Estados Unidos para o resto do mundo:

  • político, por se tratar, ao menos no Brasil, de um movimento reacionário quanto à questão agrária, liderado por latifundiários ─ em grande parte herdeiros da acumulação de terras durante o período colonial─ e “coroneis” de vastas regiões brasileiras, buscando uma manutenção e justificação (através de discursos ideológicos, vide apêndice A) de sua posição de classe dominante
  • econômico, por se tratar de mais uma investida do capital em sua empreitada de obtenção de mais-valor, em ciclos cada vez mais desmedidos, tanto em termos de produção financeira quanto em termos geográficos (de produção transnacional)

Quanto às facetas do agronegócio, há diferenças sutis em como eles induzem mazelas socioeconômicas através de seus negócios. Um dos princípios que pode ilustrar tais diferenças jaz no fato de que toda indústria quer i) comprar meios de produção o mais barato que puder, para ii) vender sua produção o mais caro que puder.

  1. Posto que seus clientes são os produtores agropecuários, as indústrias “antes da porteira” buscam vender-lhes o máximo que puderem de insumos ─ ou seja, é uma das fontes do aumento gradativo de consumo de fertilizantes, pesticidas e também de sementes transgênicas: é uma medida para “aumenta[r] sua dependência dentro do complexo agroindustrial” (Passos Guimarães, 1976)
  2. De maneira paralela, as indústrias “depois da porteira” buscam comprar as mercadorias agropecuárias ─ soja, milho, bois para carne/couro, etc. ─ o mais barato que puderem, para poderem vender seus produtos industrializados, posteriormente, o máximo que puderem ─ e é daqui que vem grande parte das disrupções de padrões alimentares provocadas, em particular, em países do Terceiro Mundo; portanto, estão entre os principais causadores do fenômeno da fome, ao menos no tocante ao “complexo agroindustrial”2 que é o agronegócio
  3. Dessa forma, a produção agropecuária está “premida entre duas forças” opostas; portanto, busca maior sustentação por outros meios, seja por grilagem e/ou invasão de terras homologadas (indígenas, ribeirinhos, reservas florestais, etc), seja por maior auxílio estatal/privado no tocante à sua produção (ex. maior facilidade de aquisição de crédito rural, subvenções federais/estaduais em seguros rurais, isenção de pagamento de impostos por “serem responsáveis pelo abastecimento nacional”, etc). Numa inversão contrária à retórica vigente, enquanto o discurso todo do agronegócio se pauta na “produção mais eficiente”, como toda a produção intensiva é dependente das indústrias a montante (insumos, máquinas agrícolas), ao mesmo tempo busca-se uma produção extensiva, no máximo de área possível, a fim de compensar “em volume próprio” a dependência externa do mercado

2.1. War on hunger e Revolução Verde

”De acordo com Davis, o crescimento da produção [agrícola] não fora acompanhado, na mesma medida, pelo desenvolvimento dos mercados; os avanços técnicos e de gestão acompanhados por parte dos produtores não seriam atendidos por compensações financeiras equivalentes; os custos de produção eram muito rígidos em comparação com a volatilidade dos ganhos dentro das fazendas; e haveria relevante desequilíbrio entre oferta e demanda para várias commodities, o que fortaleceria a tendência de queda na renda dos agricultores” (Pompeia, p. 49; grifo meu)

“Esses e outros desenvolvimentos no campo da agricultura contêm os ingredientes de uma nova revolução. Não é uma Revolução Vermelha, como a dos soviéticos, nem uma Revolução Branca, como a do xá do Irã. Eu a chamo de Revolução Verde.”
(Gaud, 1968, apud Pompeia, p. 67)

O agribusiness americano, durante a década de 1960, pautou-se principalmente em dois discursos retóricos:

  1. War on hunger” global (proclamada pelo presidente Lyndon Johnson): A produção mundial estaria ficando para trás com relação ao crescimento populacional (um discurso à la Malthus); portanto, faz-se necessário que os países em desenvolvimento (que, “obviamente”, possuem menos meios tecnológicos para produção autossuficiente, e que acabam “desabastecendo” os silos americanos) recebam “um auxílio” na direção da produção mais eficiente, dos valorosos empresários norte-americanos do agribusiness; tais empresários, a fim de proceder com sua valorosa missão, demandam auxílio ao governo para promover suas iniciativas no exterior3
  2. Revolução Verde: A fim de dar um boost na produtividade, por que não utilizar químicos sinteticamente produzidos por megacorporações para repor os nutrientes de um solo drenado por monoculturas incapazes de produzir seus próprios nutrientes (como num ecossistema natural, com várias espécies que suprem as necessidades umas das outras)? Ou, melhor ainda, plantando sementes™ que sejam melhores (em todo sentido da palavra) do que sementes comuns?

”Se a ‘guerra contra a fome’ promovia a articulação Estado-corporações na esfera pública, a ideia de Revolução Verde, alcançando grande destaque público já no final da década de 1960, atribuía legitimidade a uma das principais relações dentro do agribusiness: aquela entre as indústrias a montante e a agropecuária em si.
A expressão ‘Revolução Verde’ foi empregada para nomear os ganhos de produtividade, em países ‘em desenvolvimento’, resultante do uso de novas variedades de sementes, fertilizantes e agrotóxicos, entre outras tecnologias.
(…) Diante do contexto da ‘guerra contra a fome’ de [Lyndon] Johnson, a Revolução Verde foi um forte elemento legitimador para que o governo dos Estados Unidos incentivasse o crescimento da utilização de fertilizantes e agrotóxicos em países sob sua influência.
Ao mesmo tempo, o trabalho de agências privadas e públicas no exterior estimulava o fortalecimento de mercados para a exportação desses insumos (…)” (Pompeia, p. 66-67; grifo meu)

Note que o discurso permanece hoje em dia, de certa forma: o Brasil é i) o celeiro do mundo, e ii) a pauta de fertilizantes e de plantio de sementes transgênicas4se tornou uma necessidade básica do produtor agropecuário no agronegócio5.

2.2. A questão da soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN)

“1. A soberania alimentar é o caminho para erradicar a fome e a subnutrição, e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos os povos. Entendemos por soberania alimentar o direito dos povos a definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos, que garantam o direito à alimentação a toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e diversidade dos modos camponeses de produção, de comercialização e de gestão, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental” (Fórum Mundial de Soberania Alimentar ─ Havana, 2001; grifo meu)

“De acordo com a análise [de Susan George em O mercado da fome: as verdadeiras razões da fome no mundo], o agribusiness norte-americano destruía sistemas alimentares e preferências dos consumidores ─ com o alastramento de produtos comestíveis e bebidas açucaradas que substituíam dietas tradicionais mais saudáveis e ancoradas em valores locais ─, além de desestabilizar padrões de emprego e estruturas comunitárias nos países em desenvolvimento.” (Pompeia, p. 78; grifo meu)

A questão da soberania alimentar e nutricional, junto à noção de segurança alimentar, vai além de somente “ingerir os nutrientes necessários à vida”; reconhece-se que a alimentação é também um ato social e cultural, em que homens e mulheres sentam-se juntos à mesa para refeições às quais estejam culturalmente acostumados (no bom sentido de costume) a comer e beber. Portanto, SSAN não é somente comer bem; é comer bem, de maneira condizente à cultura local, com produção sustentável e comunitária (invés de vinda de grandes fazendas e/ou corporações de industrializados).

2.2.1. Estudo de Caso: Nestlé e desnutrição infantil no Brasil pós-1960

Após a década de 1960, instaurou-se no Brasil uma mudança substancial na dieta de recém-nascidos: ao invés da amamentação natural, passou-se a alimentá-los com leite em pó (em particular da Nestlé). Porém, devido ao seu alto custo na época ─na década de 1980, representava aproximadamente 18% do salário mínimo vigente (Coradini e Fredericq, p. 155) ─, o que se costumava fazer era dilui-lo em uma quantidade maior de água, para que ele “rendesse mais”; o resultado disso foi um alastramento de desnutrição de bebês com menos de 1 ano.

As vantagens da amamentação natural de bebês, além do contato e desenvolvimento emocional do recém-nascido, residem na quantidade de nutrientes e microorganismos que permitirão o desenvolvimento nutricional e imunológico saudáveis do mesmo. O espaço que o leite em pó ganhou na sociedade moderna, subjugando o amamentamento natural, se deu por vários fatores:

  • a maior presença de mulheres no mercado de trabalho, dando-lhes menos tempo de estar em casa e, por consequência, de amamentar seus bebês6
  • a noção de que a mamadeira é uma forma mais “moderna” e “higiênica” do que o amamentamento natural, visto como algo “atrasado”, “do passado”, “menos eficiente”
  • a sensação de mulheres de que “seu leite secou”, ou de que é “insuficiente” para o bebê ─ o que, de acordo com Coradini e Fredericq (p. 158-159), pode se dar em boa parte por fatores ideológicos, invés de problemas fisiológicos que impossibilitem a mulher de amamentar

Note-se que toda essa problemática gira em torno de um sujeito: uma empresa do ramo de alimentos industrializados, pertencentes às funções à jusante do agronegócio (uma pesquisa rápida mostra que seu leite em pó “contém leite e derivados de soja”), a qual deformou hábitos enraizados em nossa sociedade (nesse caso específico, de uma faceta presente em toda nossa história enquanto espécie: a amamentação materna) e, nesse fazer, causou mazelas socioeconômicas, em particular para as parcelas mais pobres da sociedade.

2.3. A questão da (falta de) autonomia do proletariado

”… devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais.
O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.” (Marx e Engels, p. 33; grifo meu)

Perceba-se que um fator permeia essa discussão, tanto desse estudo de caso em si, quanto da produção agropecuária dentro do agronegócio, quanto do problema da fome em geral, até mesmo quanto ao próprio problema do proletariado contra as classes dominantes: há uma demolição da autonomia da classe trabalhadora quanto a todas suas funções vitais de sobrevivência. A alimentação local, enraizada em hábitos socioculturais, é sobrepujada por alimentos industrializados, trazidos por corporações transnacionais; os alimentos, que antes eram comprados em feiras de produtores próximos, são agora amálgamas de ingredientes advindos de países os mais diversos, comprados em um grande e impessoal supermercado; os feriados nacionais, dias de memórias de conquistas históricas do povo, tornam-se dias de compras, isso quando não são dias de “por o trabalho em dia”, e por assim vai.

A revolução proletária somente virá quando o proletariado já tiver encontrado meios de readquirir a autonomia da satisfação de suas próprias necessidades, frente às imposições da classe capitalista. E como o primeiro ato histórico, segundo Marx e Engels, é a satisfação das necessidades mais básicas, dentre elas a alimentação suficiente e culturalmente apropriada, um dos mais importantes atos de resistência do proletariado é a produção de seu próprio alimento, através de redes comunitárias resilientes de produção sustentável de alimentos.

Apêndice A: Sobre o uso da ideologia no discurso do agronegócio

De acordo com Nelson Jahr Garcia, o processo pelo qual uma classe social busca transmitir suas próprias ideias a outra classe social (processo que chama de elaboração) deve fazê-lo de forma que sua mensagem “esconde quais são os interesses reais existentes por trás da ideologia, ao mesmo tempo que oculta a realidade vivida pelos receptores, para que estes não possam formular outras idéias que melhor correspondam à sua posição”.

As formas pelas quais classes sociais elaboram sua ideologia podem ilustrar melhor tal processo. De acordo com Garcia, há dois métodos que são mais comuns:

  • universalização: os interesses particulares, que trazem benefícios somente à classe emissora, são propagados de forma que pareçam interesses gerais, a benefício da maioria. No caso do agronegócio, vem à mente os discursos de “ser o celeiro do mundo”, ou de “compor 30% do PIB nacional” (como se isso fosse de interesse de toda a população nacional), ou de “ser gerador de empregos” (como se tais empregos não fossem altamente especializados e restritivos)
  • transferência: os interesses da classe dominante, expressos em sua propaganda, são difundidos como interesses da classe receptora da mensagem. No caso do agronegócio, vem à mente o discurso de Luiz Nishimori, relator do PL do Veneno, que disse que considera que defensivo agrícola é um remédio para plantações. A planta tem que receber um remédio. Como nós ficamos doentes e temos que receber remédio, trazendo a ideia de que a aprovação de mais fertilizantes é um benefício do povo, invés de ser do interesse dos latifundiários e da indústria química de fertilizantes (Bayer, Syngenta, Bunge). Além disso, toda a retórica do agronegócio (desde seus primórdios, no agribusiness americano) gira em torno do culto à eficiência, do “produzir mais é melhor” ─ como se o agronegócio produzir mais (leia-se: lucrar mais), em safras recordes ano a ano, fosse bom para a população em geral

Apêndice B: Sobre as ameaças à existência da agricultura familiar

Que os agricultores familiares têm sua subsistência cada mais ameaçada pelo agronegócio, não surpreende muito. Porém, com o panorama maior do agronegócio como não consistindo somente nos produtores agropecuários, tal visão torna-se mais abrangente:

  • Temos a ameaça não só “física”, mas também econômica, dos grandes produtores latifundiários, frente aos quais torna-se inviável continuar trabalhando na terra, sendo mais viável (ou melhor, menos inviável) buscar algum outro trabalho7 Geralmente pensamos nesse processo de acumulação fundiária quando pensamos nessa oposição com o agronegócio. O produto familiare encontra-se, portanto, em uma falsa encruzilhada:
    • Ou abandona sua terra e procura algum outro emprego (provavelmente dentro da órbita do agronegócio local)
    • Ou busca produzir commodities (por exemplo, soja e milho invés de feijão, como em uma matéria da BBC), a fim de tentar inserir-se na cadeia produtiva do agronegócio; porém, no processo, como não produzirá na mesma proporção que grandes latifundiários, ficará para trás e será tragado pela concorrência, sendo inevitavelmente induzido a abandonar suas terras (ou vendê-las a preço de banana, o que dá na mesma)
  • Porém, não só existe uma pressão por parte dos produtores agropecuários para que agricultores familiares abandonem suas terras, mas também por parte de especuladores fundiários, cada vez mais presentes no mercado financeiro (funções a montante da agropecuária) ─ em 2022, temos os exemplo da SLC Agrícola e Brasil Agro (vide matéria do Joio e o Trigo).

Apêndice C: Sobre o caráter da interconexão do agronegócio (adicionado em 19/07/2022)

A premissa por trás do surgimento do conceito de agribusiness vem com a narrativa de que os setores envolvidos ─ o agropecuário e os setores que surgiram para ocupar os vácuos devido à especialização do agricultor, i.e. insumos a montante e armazenamento-comercialização-industrialização a jusante─ estão imbricados entre si, possuem interesses relacionados.

Isso é verdadeiro em alguma medida. Um exemplo claro: no mercado de seguros rurais em 2022, tem-se em mente muitos fatores: o aumento nos preços de importação de fertilizantes, principalmente devido à Guerra na Ucrânia e todos os problemas de supply chain envolvidos, aliado ao fato de que o preço das commodities (em particular soja) não está acompanhando tal aumento nos preços, induz com que o agricultor vai ter que “apertar o cinto” e escolher a dedo como gastar sua verba para se preparar para a safra 2022/23; a propósito, tal verba que o agricultor vai dispor depende de outros tantos fatores, como o Plano Safra8, a capacidade de seguradoras que estejam dispostas a aceitar riscos em um ano com baixíssima capacidade no mercado segurador, custos com combustíveis (para o uso de tratores, colheitadeiras, drones etc, além do custo de escoamento pós-colheita) que estão extremamente em alta, e por aí vai.

Nesse exemplo “particular”, fica visível que a atividade do agronegócio é um complexo de atividades entre si; a “paralisia” de uma causa um “engavetamento” das outras, um efeito-dominó. Porém, note-se que, neste exemplo, eu optei por abordar tais fatores de uma maneira mais “factual”; eu não comentei, por exemplo, que há conflitos de interesse entre as diferentes funções do agronegócio.

Exemplo: o seguro rural se encontra nas funções a montante (junto com crédito rural e insumos), pois fornece uma salvaguarda para caso haja algum desfalque na plantação/colheita do segurado9. A seguradora ─cujos stakeholders são, em geral, possuidores de capital─ possui um claro propósito de lucrar o máximo que puder; porém, isso não é tão simples quanto “vender seguros para todos que puder”; deve vendê-lo para “perfis de risco” que sejam aceitáveis com o lucro que tais prêmios possam trazer ─ de nada adianta aceitar um risco por R 10 milhões. Não necessariamente segurados arriscados devem ser evitados; eles podem ter um agravo em sua taxa, a qual ajudará a compensar possíveis indenizações decorridas por tais perfis de risco. Do outro lado da história, o segurado só vai buscar um seguro se ele tiver alguma mínima noção de que possa precisar de uma indenização ─ fator este que a seguradora, geralmente, não tem acesso, ao que se diz que há uma assimetria de informação entre ambos; caso contrário, ele possui muito mais coisas nas quais seu dinheiro seria melhor gasto. Tudo isso para dizer: o interesse da seguradora ─ e do setor a montante em geral─ é que o produtor rural torne-se dependente de seus serviços (e no caso da seguradora, que não traga muita sinistralidade no processo); o interesse do produtor rural é de ter o máximo de lucro possível, e isso se dará quanto mais ele produzir e quanto menos ele tiver a necessidade de gastar para suster a si e a sua produção. Ou seja, no tocante ao aspecto financeiro, ambos estes setores são claramente opostos entre si; seus interesses (financeiros) são conflitantes.

E é por isso que diz-se que o discurso fundador do agribusiness, no livro A Concept of Agribusiness de Davis e Goldberg, possui cunho ideológico, pois busca justamente obnubilar tal faceta do agronegócio, priorizando somente o caráter mais “uma mão lava a outra” do negócio.

Agribusiness has no center of control or direction. It has no president, no board of directors, and no central office. Instead, it consists of several million farm units and several thousand business units ─each an independent entity, free to make its own decisions. (…) They possess little or no power of determination over the business decisions of their members.” (Davis & Goldberg, p. 24; grifo meu)

Ora, elas não possuem tal “poder de determinação” no sentido jurídico-burguês da palavra: elas “não podem” (abre aspas, claro) colocar uma arma na cabeça do produtor rural e fazê-lo comprar seus produtos, mas elas podem muito bem confeccionar sementes transgênicas ou fertilizantes que o façam comprá-las todo ano, caso ele queira ter alguma mínima chance de não serem tragados pela concorrência. Somente uma dessas formas de “poder de determinação” é proibida por lei; a outra é até mesmo incentivada, especialmente por governos que “deixam passar a boiada”.


Referências


Footnotes

  1. A primeira menção pública do termo agribusiness, por John H. Davis, foi em 17 de outubro de 1955 (Pompeia, p. 47).

  2. No meio acadêmico brasileiro a partir da década de 1970, o termo “complexo agroindustrial” passou a ser empregado em análises críticas do agribusiness, referente a suas três facetas definidoras; responsáveis brasileiros do agribusiness tentaram cooptar o termo durante a década de 1990, a fim de “entrar nas graças” do meio acadêmico, mas to no avail; eventualmente começou-se a utilizar o termo que conhecemos hoje: “agronegócio”.

  3. Numa contradição imensa com toda a retórica liberal do agribusiness de diminuição de influência do Estado: “a proposta de menor participação estatal (…) era contraposta à reivindicação por forte atuação governamental na promoção das iniciativas das grandes empresas no exterior. Não se tratava, pois, de diminuir a participação estatal na economia, mas de garantir uma seletividade sobre ela de acordo com os interesses corporativos.” (Pompeia, p. 61; grifo meu).

  4. Ou seja, sementes produzidas por empresas, que possuam vantagens quanto a sementes “normais” (ex. resistência a estresse hídrico), mas que produzam grãos inférteis ─ ou seja, que tornam o produtor dependente da compra de sementes para a próxima safra.

  5. ”À medida que se industrializava, a agricultura passava de um nível inferior a um nível superior de desempenho, mas isso também significava uma perda progressiva de sua autonomia e de sua capacidade de decisão” (Passos Guimarães, 1982, p. 150).

  6. Embora esse não pareça ser um fator tão prevalente quanto se pensaria ─ ao menos à época da pesquisa feita por Coradini e Fredericq (p. 160).

  7. No livro da Agroceres, que buscou inaugurar o agribusiness no Brasil (Complexo agroindustrial: o agribusiness brasileiro), Ney Bittencourt de Araújo, Ivan Wedekin e Luiz Antonio Pinazza elaboram que nem todas as unidades produtivas da agropecuária poderiam inserir-se efetivamente ao complexo agroindustrial do agronegócio: “Uma vez que a tendência, argumentavam, seria a continuidade do aumento da concentração fundiária [no Brasil], caberia a parte [das famílias agricultoras] procurar trabalho fora das unidades produtivas” (Pompeia, p. 131).

  8. O qual diz quantos recursos o Governo Federal vai disponibilizar para subvenções federais de seguro rural (ou seja, quanto do prêmio de seu seguro vai poder ser custeado pelo governo).

  9. No mercado de seguros agrícolas, costuma-se comercializar dois tipos de seguros: i) seguros de danos diretos (geralmente granizo, geada, vendaval, por aí vai) pagam por, como o nome diz, danos diretos à cultura plantada; ii) seguros de produtividade estabelecem algum nível de cobertura ─ uma porcentagem, geralmente 65%, 70%─ o qual será aplicado à produtividade estimada (em quilos por hectare, ou sacas por hectare) de um dado município; caso o segurado, na safra que está sendo segurada, tenha uma produtividade obtida quantidade menor do que a produtividade segurada (que é a estimada vezes o nível de cobertura), então a seguradora vai ressarci-lo da diferença entre ambos, desde que a produtividade obtida seja menor que a produtividade segurada (pois, em tal caso, o segurado, por assim dizer, “produziu dentro do acordado” com a seguradora).