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Definição de Manufatura
Uma manufatura é a agregação (Cooperação) de trabalhadores num mesmo local em que cada um deles “perdem gradualmente, com o costume [Gewohnheit], a capacidade de exercer seu antigo ofício em toda sua amplitude”, transformando o processo de produção em um conjunto de “diversas operações específicas, processo no qual cada operação se cristalizou como função exclusiva de um trabalhador” (seja ele um indivíduo ou vários), “sendo sua totalidade executada pela união desses trabalhadores parciais” (MARX, p. 411).
Surgimento da Manufatura
“O modo de surgimento da manufatura, sua formação a partir do artesanato, é, portanto, duplo. Por um lado, ela parte da combinação de ofícios autônomos e diversos, que são privados de sua autonomia e unilateralizados até se converterem em meras operações parciais e mutuamente complementares no processo de produção de uma única e mesma mercadoria. Por outro lado, ela parte da cooperação de artesãos do mesmo tipo, decompõe o mesmo ofício individual em suas diversas operações particulares, isolando-as e autonomizando-as até que cada uma delas se torne uma função exclusiva de um trabalhador específico. Por um lado, portanto, a manufatura introduz a divisão do trabalho num processo de produção, ou desenvolve a divisão do trabalho já existente; por outro, ela combina ofícios que até então eram separados. Mas seja qual for seu ponto de partida particular, sua configuração final é a mesma: um mecanismo de produção, cujos órgãos são seres humanos.” (MARX, p. 413; grifo meu)
i) Especialização induz eficiência
O surgimento da manufatura é a forma histórica com que se buscou aumentar a eficiência de produção de sistemas de Cooperação. Aproveitando-se da capacidade humana (animal) de desenvolver maior habilidade e eficiência em atividades individuais repetidas “com o mínimo dispêndio de força” (MARX, p. 414)1, dividiram grupos de indivíduos específicos para atividades específicas, às quais atêm-se o quanto for necessário. A manufatura, portanto, é o exato oposto do ditado “jack of all trades, master of none, but oftentimes better than a master of one”, sendo eminente criadouro de masters of one.
“A passagem de uma operação para outra interrompe o fluxo de seu trabalho, formando, em certa medida, poros em sua jornada de trabalho. Tais poros se fecham assim que ele passa a executar continuamente uma única e mesma operação o dia inteiro, ou desaparecem à medida que diminuem as mudanças de sua operação.” (MARX, p. 415)
ii) Especialização induz redução de multitasking
Ou seja, já tinha-se a noção de que o multitasking era um fator detrimental à eficiência do trabalho. Ironicamente, a tendência ao multitasking voltou à baila no trabalho corporativo do século XXI. Contudo, tal “fator detrimental” tem sua raison d’être natural-espontânea, trazendo um “custo” ao ser desfeita:
“Por outro lado, a continuidade de um trabalho uniforme aniquila a força tensional e impulsiva dos espíritos vitais, que encontram na própria mudança de atividade seu descanso e estímulo.” (MARX, p. 415)
“Além do esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção do trabalhador durante a realização de sua tarefa, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo seu próprio conteúdo e pelo modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos este último usufrui dele como jogo de suas próprias forças físicas e mentais.” (MARX, p. 256)
Ou seja, a “virtuosidade” é adquirida pelo trabalhador, mas não lhe pertence, nem juridicamente (posto que seu produto pertence ao capitalista), nem sequer subjetivamente, como usufruto de sua própria atividade. O trabalho torna-se, no duplo sentido da palavra, monótono.
iii) Especialização do trabalho requer especialização das ferramentas
“A diferenciação dos instrumentos de trabalho, por meio da qual instrumentos do mesmo tipo assumem formas particulares e fixas para cada aplicação útil particular, e sua especialização, que faz com que cada um desses instrumentos especiais só funcione em toda plenitude nas mãos de trabalhadores parciais específicos, caracterizam a manufatura.” (MARX, p. 416)
Entrementes, tal especificidade dos ofícios exige uma maior especificidade dos Meios de Trabalho empregados, em particular o emprego daqueles que aumentem a eficiência do ofício. Este é o fundamento que permite o advento da Maquinaria eventualmente: a concatenação do emprego de ferramentas específicas, empunhados sem a mão humana.
O trabalho total como sequência de processos parciais
“Ao combinar ofícios originalmente dispersos, tal manufatura reduz a separação espacial entre as fases particulares de produção do artigo. O tempo de sua passagem de um estágio para outro é reduzido, assim como o trabalho que medeia essa passagem.” (MARX, p. 418)
Ou seja, a manufatura se aproveita da cooperação2. porém agora faz com que os trabalhos separados “se autonomize[m] mutuamente” (MARX, p. 419). É nesse sentido que se fala de Divisão do Trabalho; quem sabe seria melhor chamá-lo de “separação do trabalho”.
“De uma sucessão temporal, os diversos processos graduais se convertem numa justaposição espacial.
(…) No resultado do trabalho de um está o ponto de partida para o trabalho do outro. Assim, um trabalhador ocupa diretamente o outro.” (MARX, p. 419; grifo meu)
É justamente sobre o pressuposto de que “em dado tempo de trabalho, obtém-se um dado resultado” de forma consistente – consistência esta adquirida através da experiência e especialização do trabalho – que jaz a possibilidade de eficiência e continuidade do processo manufatureiro total3.
É interessante que, na manufatura, é o próprio processo de produção que induz ao trabalhador que não gaste mais do que o Tempo de Trabalho Socialmente Necessário para a produção das mercadorias parciais, enquanto, no mercado, é a concorrência que induz esta exigência ao capitalista. Introjeta-se a lei do valor no próprio processo de produção: a exigência que afligia o capitalista, dia e noite, agora aflige o trabalhador durante todo seu tempo de trabalho4.
A quantificação das proporções de força de trabalho
Justamente porque trabalhos diferentes podem se descompassar no tempo5, faz-se necessário que se empregue mais trabalhadores, a fim de melhor compatibilizar os tempos de operações parciais e não comprometer a produção geral (tudo em comparação com o tempo socialmente necessário, i.e. depende do desenvolvimento técnico da época).
Dessa forma, “cria[-se] uma proporção matemática fixa para a extensão quantitativa desses órgãos, isto é, para o número número relativo de trabalhadores ou grandeza relativa dos grupos de trabalhadores em cada função específica” (MARX, p. 420).
É análogo à formação dos valores relativos e valores de troca entre mercadorias. No fim das contas, possuem o mesmo fundamento: o trabalho socialmente necessário é o fator em comum, tanto às proporções de valores de troca quanto às proporções de Força de Trabalho necessária nos trabalhos parciais, proporções fixadas pela experiência6.
O fundamento histórico da maquinaria
“O hábito de exercer uma função unilateral transforma o trabalho parcial em órgão natural – e de atuação segura – dessa função, ao mesmo tempo que sua conexão com o mecanismo total o compele a operar com a regularidade de uma peça de máquina.” (MARX, p. 423)
A própria simplificação dos processos parciais de trabalho, perpetrado pela divisão do trabalho manufatureiro, é ponto inicial para o uso de máquinas em substituição a mãos humanas, começando a serem empregadas logo no processo manufatureiro.
“Em todo ofício de que se apodera, a manufatura cria, portanto, uma classe dos chamados trabalhadores não qualificados, antes rigorosamente excluídos pelo artesanato. Ao mesmo tempo que desenvolve, à custa da capacidade total de trabalho, a especialidade totalmente unilateralizada, que chega ao ponto da virtuosidade, ela já começa a transformar numa especialidade a falta absoluta de desenvolvimento. Juntamente com a gradação hierárquica, surge a simples separação dos trabalhadores em qualificados e não qualificados. Para estes últimos, os custos de aprendizagem desaparecem por completo, e para os primeiros esses custos são menores, em comparação com o artesão, devido à função simplificada. Em ambos os casos diminui o valor da força de trabalho. Exceções ocorrem na medida em que a decomposição do processo de trabalho gera funções novas e abrangentes que no artesanato não existiam, ou pelo menos não na mesma extensão. A desvalorização relativa da força de trabalho, decorrente da eliminação ou redução dos custos de aprendizagem, implica imediatamente uma maior valorização do capital, pois tudo o que encurta o tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho estende, ao mesmo tempo, os domínios do mais-trabalho.” (MARX, p. 424)
A proliferação da manufatura no processo industrial social
O ato da manufatura se apossar de algum ofício induz que ele se torne “imediatamente separado e independente”, espraiando-se tal separação para os demais processos parciais do processo total a que este ofício pertence, justamente pela força uniformizante da manufatura quanto ao tempo socialmente necessário.
Conforme apodera-se de ofícios individuais, eles passam a não produzir mercadorias, mas meramente Matérias-Primas ao processo total em que pertencem. Na manufatura, “Apenas o produto comum [gemeinsame Produkt] dos trabalhadores parciais converte-se em mercadoria” (MARX, p. 429; destaque meu), ou seja, é somente o produto “assembled” que assume o papel de Mercadoria, i.e. que será vendida no mercado.
A divisão do trabalho na sociedade se caracteriza pela compra e venda de diferentes produtores privados. A divisão do trabalho no processo manufatureiro está totalmente sob um mesmo capitalista; os trabalhadores assumem esse papel de “produtores privados”, mas vendem meramente suas forças de trabalho, não mais do que isso e somente para um capitalista7, pois o que se produz sob o domínio de um capitalista “pertence-lhe”, não havendo relações comerciais dos trabalhadores sob seu domínio entre si.
Dessa forma, “a divisão manufatureiro do trabalho é uma criação absolutamente específica do modo de produção capitalista” (MARX, p. 433).
A acumulação de capital como fundamento histórico da manufatura
Junto com o aumento da força de trabalho empregada, surge a necessidade de aquisição de Capital Constante que comporte a força de trabalho empregada. Logo,
“o aumento crescente do volume mínimo de capital em mãos de capitalistas individuais ou a transformação crescente dos meios sociais de subsistência e dos meios de produção em capital é, assim, uma lei decorrente do caráter técnico da manufatura” (MARX, p. 433)
A partir do momento em que a manufatura se espalha como modo de produção “normal”, o trabalhador passa a ser considerado como “elemento acessório da oficina do capitalista” (MARX, p. 435); como já tratava-se de um “trabalhador livre”, mero vendedor de Força de Trabalho para sua sobrevivência, “agora sua força individual de trabalho falha no cumprimento de seu serviço caso não seja vendida ao capital”, pois ela só funciona “num contexto que existe apenas depois de sua venda, na oficina do capitalista” (MARX, p. 434).
É aqui que esvaem-se as ilusões sobre a fetichização do trabalho.
Estabelecimento da Alienação do Trabalho
“Os conhecimentos, a compreensão e a vontade que o camponês ou artesão independente desenvolve, ainda que em pequena escala (…) passam a ser exigidos apenas pela oficina em sua totalidade. As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se diante deles no capital. Constitui um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes” (aos trabalhadores parciais) “as potências intelectuais do processo material como propriedade alheia e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho, desenvolve-se na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e se completa na grande indústria, que separa o trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital.” (MARX, p. 435; grifo meu)
A dominação precede a ideia, e a ideia ilustra a dominação, e a unilateralização dos trabalhos em função de um propósito alheio expressa-se idealmente como a centralização da importância do processo de produção inteiro na figura do capitalista, seu gestor e líder.
É neste contexto que a Alienação do Trabalho adquire uma forma palpável, em que o trabalhador é despido de sua Autonomia no processo de trabalho: não só o propósito de seu ofício lhe é alheio, como até mesmo “o tempo” lhe é alheio, não devendo ser desperdiçado ou empregado “inutilmente”.
“Enquanto a cooperação simples deixa praticamente intocado o modo de trabalho dos indivíduos, a manufatura o revoluciona desde seus fundamentos e se apodera da força individual de trabalho em suas raízes. Ela aleija o trabalhador, converte-o numa aberração [Abnormität], promovendo artificialmente sua habilidade detalhista por meio da repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas” (MARX, p. 434; destaque meu)
A resistência subjetiva do trabalhador ante o processo manufatureiro
“Ao mesmo tempo, a manufatura nem podia se apossar da produção social em toda sua extensão, nem revolucioná-la em suas bases. Como obra de arte econômica, ela se erguia apoiada sobre o amplo pedestal do artesanato urbano e da indústria doméstica rural. Sua própria base técnica estreita, tendo atingido certo grau de desenvolvimento, entrou em contradição com as necessidades de produção que ela mesma criara.” (MARX, p. 442)
Pela não-naturalidade do processo manufatureiro, detalhista ao extremo e monótono, era natural que houvesse uma resistência do trabalhador, tanto objetiva quanto subjetiva. “A queixa sobre a falta de disciplina dos trabalhadores atravessa então todo o período da manufatura” (ibid).
Dessa forma, estabelece-se um fator necessário do desenvolvimento da Maquinaria, tanto como substituto do trabalho humano (já unilateralizado e atomizado), como o metrônomo que dita o ritmo do trabalho humano empregado.
Referências
- MARX, Karl. O Capital. Livro 1: O processo de produção do capital. Boitempo Editorial, 2013.
- Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar - 2019 (Longa Metragem)
- Formas de objetividade e de subjetividade capitalistas (Monografia Lukács)
Footnotes
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Vide o que neurocientistas usam de slogan para a Regra de Hebb: “neurons that fire together, wire together”. ↩
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“Induzida”, pois trabalha-se “para o mesmo capitalista” mais do que trabalha-se “uns com os outros”. ↩
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“Apenas sob esse pressuposto os processos de trabalho diferentes e mutuamente complementares podem prosseguir justapostos espacialmente, de modo simultâneo e ininterrupto.” (MARX, p. 419) ↩
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É um pulo para que essa obrigação de eficiência no trabalho espraie-se para a vida subjetiva. Cf. Formas de objetividade e de subjetividade capitalistas (Monografia Lukács) e Uma visão etnográfica da Faria Lima ─ Sobre a moral e a eficiência capitalistas. ↩
-
Como nas cenas de Tempos Modernos em que o atraso de um trabalho afeta os trabalhos subsequentes. ↩
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“A divisão manufatureira do trabalho cria (…) a articulação qualitativa e a proporcionalidade quantitativa dos processos sociais de produção – portanto, uma determinada organização do trabalho social – ao mesmo tempo em que, com isso, desenvolve uma nova força produtiva social do trabalho.” (MARX, p. 438) ↩
-
Ao menos referente a um dado processo de produção. ↩