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Monografia que escrevi para a disciplina Teoria da História II (de Jorge Grespan), sobre os conceitos de formas de objetividade e formas de subjetividade em Lukács.


Formas de objetividade e de subjetividade capitalistas

A sociedade capitalista sustenta-se sobre a propriedade privada dos meios de produção. Tal prática induz que os produtores tornem-se independentes entre si no tocante à produção, enquanto permanecem paradoxalmente dependentes no tocante ao processo de troca, momento este no qual podem ver se seus produtos poderão ser vendidos ou não (i.e. se terão alguma serventia/serão valor de uso para outrem); ou seja, o caráter social de seu trabalho somente aparece mediante a troca de coisas (de mercadorias). A evolução desse modo de produção capitalista acaba produzindo uma fragmentação cada vez maior do processo de produção como um todo, e, por conseguinte, uma maior especialização por parte dos produtores1 (a fim de garantir a eficiência/rentabilidade desses processos isolados).

A reificação (ou coisificação) é a forma de objetividade pela qual a sociedade capitalista apresenta seus objetos aos sujeitos: os produtos do trabalho (as mercadorias) aparecem-lhes como “uma coisa óbvia, trivial”, enquanto suas relações com outros indivíduos produtores se dão primariamente mediante a troca dessas mercadorias, sejam estes indivíduos capitalistas ou assalariados2 (os últimos também considerados produtores da única mercadoria que lhes é “de direito”: sua força de trabalho). A propriedade privada cria uma forma de objetividade própria: as coisas tornam-se objetos distintos sob essa forma do que em outrora3. Com a hegemonia crescente da forma-mercadoria ─ que primeiro aparece de forma contingente nos produtos comercializados nas fronteiras das comunidades, e eventualmente penetra em todas as esferas da vida ─, os homens encontram-se em “um mundo de coisas acabadas e de relações entre coisas (…), cujas leis (…) se lhes opõem como poderes intransponíveis”4.

A forma-mercadoria universaliza-se quando engendra-se a abstração de seus traços qualitativos, ou seja, quando passam a ser universalmente comparáveis entre si. Ora, todas as mercadorias, por serem primariamente valores de uso, são fruto do trabalho humano; portanto, abstraindo-se do caráter qualitativo do trabalho de sua produção, pode-se ter uma noção meramente quantitativa de uma mercadoria: o tempo socialmente necessário de trabalho humano abstrato empregado em sua produção. Tal abstração permite que as diferenças qualitativas entre as mercadorias possam ser “ironed out”, de forma que todas possam ser vistas como formalmente iguais entre si.

Justamente essa quantificação do trabalho, esse cálculo da eficiência do homem em jornadas de trabalho de tantas e tantas horas por dia, faz com que os “cérebros, músculos, nervos etc.” de um assalariado se lhes apareçam como uma mercadoria, como algo que ele possui e que pode vender a algum capitalista que esteja disposto a empregá-la em sua própria produção. O aspecto útil e qualitativamente distinto de sua força de trabalho perde espaço ante o aspecto abstrato dela. Tanto faz se um ou outro assalariado trabalham para uma fábrica de confecção de parafusos ou de pregos; o trabalhador passa a se sentir substituível, posto que “é” não mais que uma mera instância de um trabalhador abstrato; menos ainda, é não mais que um ser capaz de trabalhar abstratamente (via emprego de “cérebros, músculos, nervos etc.”) por um dado período de tempo (“quando muito, é a personificação do tempo [abstrato]”, como Marx o pôs n’A Miséria da Filosofia5), sentindo-se substituível até mesmo por um ser inorgânico e inconsciente, uma máquina ou um algoritmo6. O trabalhador vê seu trabalho como não mais que uma parte de um sistema estranho, mais uma “engrenagem” das máquinas de Chaplin, e cujo produto final não reconhecerá como seu7.

Mediante a crescente racionalização e especialização da produção, o trabalho de um assalariado passa a ser somente “uma função especial que se repete mecanicamente8; tal processo não mais restringe-se a nenhum local nem instante em particular, e torna-se, por assim dizer, “unstuck in [space and] time”9. Dessa forma, desaparecem do horizonte os assalariados jacks of all trades; o trabalhador não precisa mais fazer um malabarismo de atividades distintas, mas restringe-se a uma só atividade, durante todo o período em que sua força de trabalho esteja sendo empregada pelo capitalista ao qual submeteu-se (“livremente”, por escolha “própria”)10; talvez seja mais justo chamá-lo de “master of only one (at a given time)”, posto que pode ser empregado ora aqui, ora ali após uns “polimentos” técnicos, conforme as necessidades do capital (as quais o trabalhador pode até internalizar como vontade própria, caso o ajude a dormir melhor de noite…).

Tal abstração do trabalho humano no seio das mercadorias induz também formas de subjetividade, nas quais os próprios sujeitos fragmentam-se psicologicamente: conforme avança a racionalização da produção, surge também a internalização mental desse processo de fragmentação da vida. Mesmo suas características mais intrínsecas, suas faculdades mentais e emocionais, tornam-se passíveis de serem mais uma mercadoria a ser ofertada ao mercado, junto de sua força de trabalho, embora algumas tenham maior “prioridade” sobre as outras: sua “força de vontade”, sua “dor de dono”, seu “autodidatismo” etc. etc.; enfim, prioriza-se a disponibilidade de tempo ao trabalho, ao mesmo tempo que (implicitamente) descartam-se os indivíduos que “ousam” reivindicar tempo de lazer11. Dessa forma, tais faculdades tornam-se não mais algo intrínseco ao sujeito, mas algo comum, algo procurado (e instigado, principalmente) pelo mercado de trabalho, ou seja, tornam-se algo extrínseco. Somente conquanto tais características psicológicas possam ser “integradas em sistemas especiais e racionais e reconduzidas ao conceito calculador”12, ou seja, conquanto sejam úteis e pertinentes ao processo de trabalho (e de gerar lucro), somente então elas não serão “suprimidas” no processo de abstração do trabalho. Porém, como tais características se tornam tão “abundantes” no mercado, abstrai-se de seu aspecto qualitativo, distintivo: mede-se, então, qual indivíduo possui mais de tal característica que os outros, quantitativamente.

Dessa forma, o sujeito não pode evitar sentir-se como mero espectador em seu trabalho, sendo mero “elemento acessório da oficina do capitalista”13; quando muito, sendo o responsável pela manutenção das máquinas de produção, vistas como os “verdadeiros” geradores de valor numa indústria. Acaba por tornar-se não mais que um punhado de potenciais inconveniências e “fontes de erro” ao capitalista. Tal afetação pelas “leis naturais” se aplica a todos os indivíduos de uma sociedade capitalista: mesmo os proprietários privados dos meios de produção são sujeitos às mesmas “leis naturais” da sociedade, da economia etc. que os assalariados; seu maior ou menor sucesso (financeiro) traduz-se em como conseguem efetivamente fazer o “cálculo correto das oportunidades desse curso [da produção]”14; o processo de “criação” torna-se uma mera aplicação mais ou menos efetiva das “leis” que regem o mundo. Objetivamente, essas leis se estabelecem aos indivíduos como “poderes intransponíveis”: as leis da mercadoria, oferta-demanda, leis jurídicas etc. O indivíduo pode até usar e abusar dessas leis, mas nunca modificar o curso desses “rios”, que se lhe apresentam como force of nature. No final do dia, como Marx sempre diz n’O Capital, até mesmo os burgueses são meros funcionários do capital.


Referências

  • Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”. In: História e Consciência de Classe. Martins Fontes, 2003.
  • MARX, K. O Capital, Livro I, Boitempo, 2017.
  • MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã, Boitempo, 2015.

Footnotes

  1. “a racionalização é impensável sem a especialização.” (LUKÁCS, p. 202).

  2. “O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem nada mais a esperar além da… esfola.” (MARX, p. 251).

  3. “O solo não tem nada a ver com a renda fundiária, nem a máquina com o lucro. Para o proprietário fundiário, o solo é sinônimo de renda.” (citação de Marx em LUKÁCS, p. 210; grifo meu).

  4. LUKÁCS, p. 199 (grifo meu).

  5. LUKÁCS, p. 205.

  6. “O homem não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas funções ele deve se submeter” (LUKÁCS, p. 203-4; grifo meu).

  7. “O que caracteriza a divisão [manufatureira] do trabalho? Que o trabalhador parcial não produz mercadoria. Apenas o produto comum [“assembled”] dos trabalhadores parciais converte-se em mercadoria.” (MARX, p. 429; grifo e adendo meus).

  8. LUKÁCS, p. 201.

  9. Slaughterhouse-5, Kurt Vonnegut.

  10. “…cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado (…) e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida” (MARX, ENGELS; p. 37-8).

  11. Marx ironiza sobre uma afirmação de um capitalista que condena seus empregados que, ao “abandonar a fábrica, [tornam] inútil um capital [uma máquina] que custou £100.000”: “Ora, onde já se viu! Tornar ‘inútil’, mesmo que por um instante apenas, um capital que custou £100.000! É, de fato, uma atrocidade que um de nossos homens abandone a fábrica por uma única vez!” (MARX, p. 478); mutatis mutandis ao fenômeno “hussle culture” atual, de “não tornar inútil” o próprio tempo individual e abdicar de todo o tempo de lazer em função do trabalho.

  12. LUKÁCS, p. 202.

  13. MARX, p. 435.

  14. LUKÁCS, p. 218.