up:: Uma visão etnográfica da Faria Lima

Disclaimer: Estes textos são sobre minha breve passagem, em uma só empresa, no meio corporativo. Porém, percebo padrões que sinto que sejam presentes a este meio como um todo. Estes textos não são justificações ou enaltecimentos deste ambiente e de seu habitus; são, antes de tudo, uma espécie de vista etnográfica desse meio, podendo ser de interesse particular para quem esteja totalmente alheio a este ambiente ─ e em particular de quem fala tanto sobre a Faria Lima através de recursos retóricos, mas que não faz ideia da realidade de seus próprios argumentos.

Sobre trabalhar na Faria Lima

Há muitas coisas por onde começar. Comecemos pelo começo então: como é trabalhar na Faria Lima?

For starters, já se vê a padronização tanto da vestimenta quanto dos perfis étnicos: “pessoas brancas de roupa social” é um bom resumo, o quão estereotípico possa parecer para quem é de fora. Aliás, é bem difícil encontrar alguma pessoa negra que trabalhe nos cargos, entre aspas, “verdadeiros” das empresas, invés de cargos como atendente, secretária ou faxineira (e, aqui, geralmente mulheres tendem a ser bem mais comuns). That’s how it goes.

Há um uso ubiquitous de termos em inglês, do qual sou pessoalmente “culpado”, e que pessoalmente justifico pela prioridade de comunicar ideias ante à pureza da linguagem1. Dos termos mais comuns, alguns são (não em ordem de relevância): targets, update, review, pain points, reporting, feedback, top-down/bottom-up, ESG2, corporate, SMEs3, business, stakeholder(s), must-wins, debrief, SWOT4, churn, soft market/hard market, AvE5, high-level/low-level, etc.

A cultura corporativa

”O sucesso resulta de um cálculo total que se espraia por todas as dimensões da vida e é, em última análise, idêntico à própria eficiência que produziu o sucesso, sinônimo dela. O sujeito desempenha atividades de maneira eficiente para ter sucesso; obtém sucesso quando desempenha atividades de maneira eficiente; usa o seu sucesso de maneira eficiente para obter mais sucesso, desempenhando atividades. O sucesso e a eficiência não são mais do que dois nomes para a mesma coisa colocada em relação consigo mesma: trata-se da submissão da vida ao critério da calculabilidade, ao emprego das ferramentas geradoras de eficiência e da transformação do emprego das ferramentas em finalidade da vida.” (de Oliveira, p. 72; grifo meu)

A princípio pode passar batido, mas eventualmente o óbvio se mostra: as vistas políticas e sociais nesse meio tendem ao corporativo, eficiente, competitivo, privado, privatizado ─ genuinamente capitalista em espírito. As ações e interesses minimamente tangenciais ao mercado de trabalho precisam apresentar seu atestado de utilidade: conhecer pessoas torna-se networking; ações sociais e voluntariado tornam-se adições ao currículo (e posts no LinkedIn); novos hobbies tornam-se aquisições de novas habilidades; descontração e momentos de espairecimento adquirem caráter de manutenção da força de trabalho6; não conformar-se a essas recontextualizações torna-se exceção, não regra. O tempo individual torna-se uma mercadoria a não ser desperdiçada em vão7.

Sobre “o Mercado”

No meio corporativo, fala-se do “Mercado” como uma verdadeira entidade, e frases como “o mercado está nervoso” ou “o mercado vai se acertar” são frases ditas com uma confiança incorruptível. Porém, na visão e experiência deste meio, intui-se que o Mercado não é uma entidade externa e independente, mas mais similar a um “movimento” constante ─ como um mar que pode estar em calmaria ou numa destrutiva tempestade ─ com “leis” próprias. É até mesmo ambíguo, pois usa-se o termo Mercado em, no mínimo, duas formas: mercado como sendo “os meus competidores [no meu ramo de negócios]”, e o Mercado sendo “a soma de todas as empresas de um dado ramo (e de ramos adjacentes que o influenciem)“. Dessa forma, pode-se dizer “precisamos adaptar nossas taxas com o [resto do] mercado” ou “o Mercado está caminhando para uma recessão”8.

Escrever sobre algo tão amplo e abstrato traz certa dissonância cognitiva, pois são possíveis coisas tão contraditórias quanto a periodicidade das crises que acometem algum mercado inteiro (similar a uma tempestade que pode ser vista chegando de longe)9 e a centralidade de certos “players” que ditam as condições de seus respectivos ramos (similar a um congestionamento de trânsito devido a um acidente em particular)10; o primeiro caso surge como uma lei universal que acomete as entidades particulares, e o segundo caso surge como entes particulares estabelecendo regras universais ─ e até mesmo esse “estabelecimento” ocorre mediante a obediência de certas “leis” mais fundamentais (demanda e oferta, custos de operação, regras tácitas de livre-comércio etc etc).

Ao fim e ao cabo…

Ao final do expediente, saio do prédio onde trabalho e parto para pegar o trem, sempre encontrando, no meio do caminho, um monte enorme de arroz e macarrão jogado na sarjeta, sempre no mesmo lugar da Rua Tabacow, toda santa vez. Em boa parte das vezes, as ruas da região também ficam todas molhadas ao entardecer, independentemente do clima e época, ocasionalmente com algum vazamento visível; lembrava-me das pessoas em Itu que volta e meia ficam sem água em suas casas, às quais recomenda-se “não desperdiçar água”. That’s how it goes.

O perfil eminentemente branco e com nível superior dos trabalhadores da Faria Lima eventualmente cede espaço ao perfil eminentemente nordestino e sem formação dos passageiros dos trens da CPTM – perfil este de pessoas contra as quais tenho de retorcer meu corpo num espaço impossivelmente abarrotado, no horário de rush que cada vez mais prolonga-se após as 18h. Como Augusto, e com uma resignação pungente, relembrava-me toda vez de que eu era mortal, e de que estava muito menos distante desses pobres coitados que se matavam de trabalhar para sobreviver do que dos bilionários europeus acionistas aos quais tributávamos nosso estresse, nervos e números efêmeros.


Referências

  • DE OLIVEIRA, Pedro Rocha. Discurso filosófico da acumulação primitiva: estudo sobre as origens do pensamento moderno. Editora Elefante, 2024.
  • Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”. In: História e Consciência de Classe. Editora Martins Fontes, 2003.

Footnotes

  1. I.e. getting things across, perdoem meu Francês.

  2. Environmental, Social, Governance. Alguns traduzem para ASG: Ambiental, Social, Governança. É toda uma can of worms, que discuto posteriormente em Sobre ESG no meio corporativo e ESG é uma versão meramente formal de sustentabilidade.

  3. Small and Medium Enterprises.

  4. SWOT analysis - Wikipedia.

  5. Actual vs Expected.

  6. E o remediamento do famigerado burnout, a mais debilitante das aflições (da Força de Trabalho) do proletário. Hell if I know!

  7. Meu ensaio Formas de objetividade e de subjetividade capitalistas (Monografia Lukács) pode ser interessante de ser lido sob essa perspectiva corporativa.

  8. Note que, na primeira frase, infere-se que a pessoa está em uma empresa (cujas taxas precisam se adaptar às dos competidores), o que não necessariamente é o caso na segunda frase, na qual entra uma noção de Sistemas Complexos, e isso já dá MUITO pano pra manga.

  9. No mercado de seguros, isso se manifesta como Soft Markets e Hard Markets, que não são necessariamente crises, mas certamente são um efeito-gangorra em que ora as seguradoras estão na vantagem – no tocante ao lucro/aquisição de “margens” – (caso de hard market), ora são forçadas a queimar margens a fim de não perder clientes (caso de soft market).

  10. Isso acontece pois, em qualquer ramo comercial, os preços são sempre influenciados (direta ou indiretamente) com relação a alguma média, e.g. preços médios de mercadorias vendidas por empresas de certo ramo, sejam seguradoras de carros ou vendedores de violões. Logo, players grandes o suficiente conseguem impulsionar essa média através de suas próprias decisões comerciais.