up:: Mas você nem parece autista! | Nicholas Funari Voltani | Medium

”cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas”
(Paulo Leminski)

Recentemente consegui meu laudo de autismo (TEA nível 1), aos 26 anos de idade. Há alguns anos, desde cerca de 2019/2020, essa era a minha expectativa, e ela somente foi confirmada agora em abril de 2024. Era minha expectativa, pois era uma hipótese tão inesperadamente plausível para uma vida, a princípio, “à deriva mas sem motivo algum”.

Me dizem que eu pareço “normal”, mas só Deus sabe quanto esforço é necessário para “ser normal”: eu não posso ser direto com minhas palavras sem ser tomado por rude; eu não posso usar as palavras “erradas” com as pessoas “erradas” sem ser julgado por não seguir as regras não-verbais que permeiam todos os ambientes; eu preciso cumprimentar todo mundo em um dado ambiente social, os homens com cumprimentos de mão e as mulheres com beijo na bochecha — menos quando não se deve cumprimentá-las com beijo na bochecha, como em contextos formais e/ou com assimetrias de poder (ninguém nos ensina isso); eu não posso recusar ir em festas sem que tomem para o pessoal e possam deixar de me convidar futuramente; eu não posso fazer o que vocês afetuosamente apelidaram de “cara de bunda”, que acontece 1) quando estou exausto de multidões e muvuca e tentativas fracassadas de ouvir as vozes das pessoas que são abafadas pelo barulho ambiente (pois meu cérebro odeia separar barulhos de fundo e conversas), 2) quando tento falar algo mas minha voz não é capaz de sobrepujar essa cruel vitrine sonora que me circunda e me força a me isolar ainda mais, e que 3) é potencializada pela frustração de que mais este lugar me relembra de que eu não pertenço em lugar algum, e de que provavelmente erraram na taxonomia de espécie animal à qual fui assinalado ao nascimento e à qual, dizem-me as lendas, eu “pertenço”. Etc etc etc.

Mas nossa, você nem parece autista! Pois é, e ninguém teria audácia de falar que o Ricky Martin parecia gay há mais de 10 anos atrás, e olhe só que surpresa! Quem diria que pertencer a um grupo de pessoas que é marginalizado pelos seus trejeitos peculiares nos induziria a imitar vocês, neurotípicos, tão bem!? O engraçado é que chocaria bem menos que eu fosse diagnosticado há 10 ou 15 anos atrás: eu já era considerado esquisito mesmo, eu ao menos ganharia um crachá confirmatório aos olhos das gentis crianças e adolescentes com os quais compartilhei as piores experiências de minha formação como pessoa.

Toda vez que ouvimos algum “mas você nem parece autista, você parece normal”, é quase como se ouvíssemos algo tão rude quanto “mas você nem parece gay, parece homem” ou “você nem parece cego, seus olhos nem são brancos”. Tais comentários podem até vir de um lugar de desconhecimento e ignorância (e aí não posso cobrá-lo do “pecado” que não sabe em que incorre), mas, de qualquer forma, para nós autistas, nos dizer que “nem parecemos autistas” é quase uma invalidação: eu não preciso parecer “autista o suficiente” para você; eu simplesmente sou, independente de sua imagem mental sobre esse grupo de pessoas. Em quase todas as vezes que nos dizem isso, para nós é mais uma das incontáveis vezes que somos rebaixados; afinal, não há nenhuma pessoa em sã consciência que vá se autoentitular algo tão estigmatizado (quase vulgar) quanto “autista” simplesmente por “modinha”. Não há pessoa em sã consciência que abdique de privilégios de uma vida neurotípica só para “militar”, só para “ser diferente”; quem seria o imbecil que acordaria em um belo dia sem nada para fazer, e decide, voluntária e publicamente, sem motivo algum, expor a obsolescência de seus privilégios de “normalidade”? Se você acredita que tenha gente que faça isso não ironicamente, o meu mais sincero vai tomar no olho do seu cu.

Não reivindicamos o termo “autista” para causar choque e drama, e sim porque é algo que nos diz respeito, que nos representa profundamente, depois de uma vida inteira na qual nos sentimos profundamente conscientes da alienação e ostracismo silenciosos, conscientes ou subconscientes, dos grupos sociais dos quais fazemos parte. Depois de uma vida na qual nenhuma palavra cabia em nossas personalidades e sofrimentos, é nada menos que assombroso descobrir que há milhões e milhões de pessoas ao redor do mundo que não só sentem o mesmo que nós, mas com as quais não temos que ficar futilmente desperdiçando palavras tentando explicar como nos sentimos, pois elas compreendem, e sentem, profundamente muitas das nossas atribulações. Tal qual a alegoria da caverna de Platão, somos brevemente fulminados por esta autodescoberta, para então passarmos a ver nós mesmos e o mundo com mais clareza e distinção. E, assim como a alegoria, frustramo-nos quando “retornamos” ao mundo com este recém-adquirido autoconhecimento tão importante às nossas almas, mas agora renegados explicitamente como ingênuos pelas pessoas com as quais supostamente compartilhávamos a “normalidade”; torna-se, então, intragável ser forçado a aprisionar-se novamente pelas categorias extrâneas daqueles que decidem o que “normal” é, categorias dentro das quais sempre tivemos tanto atrito para encaixar-nos.

Uma vez li que a sociedade não aceita neurodivergentes, ela tolera neurodivergentes; se esse é o caso, então ser um autista manso somente me tornará um tapete sobre os quais todos pisariam no pior dos casos, e um fantoche dos interesses dominantes, engraçadinho e inofensivo, no melhor dos casos. A mansidão somente nos levará à passividade política. O autismo não é inerentemente político, claro, ele em si só não passa de uma condição neurológica; mas estar submetido a uma vida de sofrimentos e privações, transportes públicos abarrotados desconfortáveis, atendimentos psicológicos e psiquiátricos caríssimos, dificuldades físicas e/ou psicológicas de se adaptar ao mercado de trabalho e à arbitrariedade de uma jornada de trabalho de (não menos que) 40 horas, etc — tudo isso faz com que ser autista se torne uma questão eminentemente política, não no sentido cotidiano de partidos, mas num sentido de luta constante por autopreservação e sobrevivência em um mundo tão inflexível à nossa existência.

E tudo isso traz raiva. Ojeriza. Fúria. Temos muito a ganhar em revoltar-nos, e digo no plural, pois todos nós compartilhamos esta opressão, e a chama de nossa revolta não apaga-se, não importa o quanto ela pareça haver amainado; será somente pela ação coletiva que teremos o que merecemos. É tempo de que tomemos consciência de nossas condições, de que nos reconheçamos em nossas opressões compartilhadas, e de que lutemos ativamente por nossa demanda inexorável por uma vida digna. Discursinhos bonitos na televisão e nas redes sociais não mudarão nossas dificuldades materiais. Não será com migalhas que seremos apaziguados; não será com condescendência e infantilização que nos sentiremos reconhecidos. E, mais importante, não será adequando-nos à normatividade neurotípica que prevalece na sociedade capitalista que nos sentiremos adequados; será somente quando impusermos nossa existência intransigentemente que seremos respeitados, não meramente tolerados. Será com a taxação das grandes riquezas, será com a redução da jornada de trabalho, será com a expansão do sistema público de saúde e de transporte. “Tão pouco para tanta gente…”

Que tornemo-nos os sujeitos de nossas histórias, e de que não toleremos que a narrativa neurotípica, capitalista, meritocrática, paute como devemos viver e agir; que lutemos por uma sociedade livre de opressões, não só para nós neurodivergentes, mas também para nossas irmãs e irmãos LGBTQIA+, negros, indígenas, colonizados do Sul Global e explorados e oprimidos do mundo inteiro, pois ou todos somos livres, ou ninguém será genuinamente livre; não existe liberdade genuína onde há opressões veladas.

Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.” (Rosa Luxemburgo)

“A lagarta é uma prisioneira das ruas que a conceberam.
Seu único trabalho é comer ou consumir tudo em sua volta, para que consiga se proteger dessa cidade louca.
Enquanto consome seus arredores, a lagarta começa a perceber formas de sobreviver.
Uma coisa que percebi é como o mundo rejeita-a, mas louva a borboleta. A borboleta representa o talento, a gentileza, e a beleza interior da lagarta.
Mas tendo uma visão dura sobre a vida, a lagarta vê a borboleta como fraca, e descobre formas de aproveitar-se dela para seus próprios benefícios.
Já rodeada por essa cidade louca, a lagarta passa a trabalhar em seu casulo, que a institucionaliza. Ela não pode mais ver além de seus próprios pensamentos.
Ela está presa. Enquanto cercada por essas paredes, certas ideias criam raízes, tais como ir para casa e trazer de volta novos conceitos a essa cidade louca.
O resultado? Asas começam a surgir, quebrando o ciclo de sentir-se estagnada. Enfim livre, a borboleta elucida situações que a lagarta nunca havia considerado, acabando com o conflito eterno.
Embora a borboleta e a lagarta sejam completamente diferentes, elas são uma só.”
(Kendrick Lamar, Mortal Man - YouTube - To Pimp a Butterfly)