up:: Uma visão etnográfica da Faria Lima

Disclaimer: Estes textos são sobre minha breve passagem, em uma só empresa, no meio corporativo. Porém, percebo padrões que sinto que sejam presentes a este meio como um todo. Estes textos não são justificações ou enaltecimentos deste ambiente e de seu habitus; são, antes de tudo, uma espécie de vista etnográfica desse meio, podendo ser de interesse particular para quem esteja totalmente alheio a este ambiente ─ e em particular de quem fala tanto sobre a Faria Lima através de recursos retóricos, mas que não faz ideia da realidade de seus próprios argumentos.


O que percebe-se no meio corporativo, como seu funcionário ou observador externo, é a prevalência das constantes inovações que apresentam-se e das quais todo mundo não consegue calar a boca sobre.

No meio financeiro, esse hype todo assume o nome de bull market1 : acionistas ficam excitados com algum brinquedo novo no mercado e correm para investir nele, criando todo um movimento em comboio no processo. Somente na década de 2020 (as of now, 2024), houve o hype de computação quântica2, o hype sobre blockchains, NFTs e criptomoedas, e o ainda-pulsante hype de LLMs3.

Justamente por envolver tanto dinheiro de indivíduos cujo foco em vida é de ganhar mais dinheiro do que perdem, deve-se concluir que há alguma racionalidade nesses investimentos tão vultosos, mesmo que tantos deles sejam claros dead-ends para quem tenha o mínimo de discernimento.

Investimentos em “tecnologia quântica”: pico rápido, queda rápida. Fonte: Steady progress in approaching quantum advantage | McKinsey (abril de 2024). Os investidores se ligaram? Não, estão investindo agora em IA. Quem sabe o que virá depois?

Os ciclos do hype

Ciclo de hype de Gardner. Fonte: Gartner hype cycle - Wikipedia.

É ilustrativo pensar no chamado “ciclo de hype de Gardner”, porque ele representa muito bem esse fenômeno generalizado4: alguma tecnologia nova desponta e atrai a atenção de alguns investidores, o que então chama a atenção para mais investidores e por aí vai. Em algum momento essa euforia de investimentos chega a um limite, a partir do qual novos entrantes já não vão ter o mesmo ROI do que aqueles que chegaram primeiro5, então há um limite racionalizado dos investimentos: não há mais tanto incentivo racional para entrar nesse mercado mais (desconsiderando grifters querendo ganhar o dinheiro de idiotas ricos, p. ex. NFTs – no fim das contas, são quantidades desprezíveis em comparação com investimentos de capitalistas). Eventualmente há uma decepção quando o retorno real dos investimentos tarda a chegar, ou mesmo quando torna-se oneroso. O gráfico aqui aponta uma visão otimista, onde a tecnologia de fato torna-se útil ao mercado de trabalho, em cujo caso ela penetra nos workplaces de maneira mais “parcimoniosa”, menos rumorosa, caso seja útil à produtividade; caso contrário, ela graciosamente sai de cena, rumo ao esquecimento do público em geral, sendo continuada por quem, de fato, entende seu potencial e como aproveitá-lo eventualmente.

A visão do capitalista que compra hype

Dessa forma, se vê que há um fator de desconhecimento, até de certa “irracionalidade”, que permeia esse processo todo de adoção de hypes ruidosos (por parte de gente com muito dinheiro, destaque-se). Parece-me que, quando acende a luzinha mental de “isso é um trend global” na cabeça dos superiores de grandes empresas, eles começam a colocar essa pauta na mesa dentro da própria empresa, e discutem sobre como aderir a esse trend – para “não comer poeira” do resto da competição, claro!

Aqui, como várias vezes já observei nas tomadas de decisão mais particulares do meio corporativo em meu trabalho, sequer se trata de ponderar se aderir a essa nova “moda” é uma escolha acertada: preza-se por uma ação rápida e não-tão-irracional, por mais que argumente-se que seria melhor não gastar recursos no que provavelmente será algo passageiro, talvez até inútil. Preza-se mais pela celeridade de uma tomada de decisão do que por sua certeza – afinal, qualquer discurso pode ser convincente se proferido com assertividade suficiente. Além disso, é bem mais difícil acalmar stakeholders acometidos pela impaciência da ação do que simplesmente abaixar a cabeça e queimar recursos na fogueira, com fé em melhores augúrios.

Por que tantos capitalistas fazem isso? Não pode ser puramente por imediatismos subjetivos, por otimismo ou burrice, senão todos os capitalistas já teriam falido depois de tantas crises do século XX e XXI. Há de haver algum substrato racional que convença tantos deles a aderir a tais novas ondas de novidades tecnológicas. E pois bem, no fim do dia, é tal qual durante a Revolução Industrial: as inovações tecnológicas eram tão rápidas e disruptivas que ficar para trás, com maquinaria do ano anterior, era suficiente para lançar os menores capitalistas no olho da rua, ao Exército Industrial de Reserva (Sobrepopulação Relativa). Como Marx descreve n’O Capital:

“Durante esse período de transição, em que a indústria mecanizada [i.e. inovação tecnológica] permanece uma espécie de monopólio, os ganhos são extraordinários, e o capitalista procura explorar ao máximo esse ‘primeiro tempo do jovem amor’, por meio do maior prolongamento possível da jornada de trabalho. A grandeza do ganho aguça a voracidade por mais ganho.” (MARX, 2013, p. 479; destaque meu)

A visão do capitalista que vende hype

Sabe-se que há pesquisa genuína sendo feita em computação quântica, blockchains e IA. Há algum substrato real, com trabalho sério envolvido, por trás desses trends de mercado, por mais que sua entrada na boca do corporate envolva vesti-lo com terno, gravata e palavras agradáveis aos investidores na sala.


Aqui vemos um dos patronos de tecnologias que empregam Inteligência Artificial de ponta, nome extremamente relevante no ramo inteiro, jantando o Elon Musk no seco. Fonte: LeetCode. (É vergonhoso ver que essa “conversa” realmente aconteceu! Não conhecer Yann LeCun!!!)

Dificilmente tais óleos de serpente seriam vendidos por técnicos da área – cientistas são péssimos em pitching! Quem mais se garante no mercado tende mais a ser quem sabe falar bonito do que quem realmente tem algo a dizer. Tudo se trata sobre vender bem o peixe: os “inovadores” buscam seus anjos patronos6 nos altares adequados, Wall Street ou Faria Lima; os rumores dessa novidade que envolveu tanto dinheiro espalham-se pelo mercado, convencendo primeiro os ingênuos e os desesperados, e logo convencendo os mais comedidos, em efeito cascata; chega um ponto em que “as evidências mostram” que todo mundo está ganhando com isso: é óbvio que não vão todos pular da ponte juntos!7

A visão dos devotos do hype

No fim das contas, há um fator subjetivo que também está presente nisso tudo: até o profissional mais incompetente pode aproveitar dos trends de mercado, pois pode colocar no seu currículo que conseguiu enxergar a maré vindo de longe. Pouco importa se a maré tragou tudo à sua frente e levou imbecis à bancarrota; importa que ela foi vista de longe, importa que ele teve proatividade em professar sua fé nela desde cedo e em converter novos adeptos a ela – ou seja, para o LinkedIn, ele é um innovator, tech-savvy8.

Existe um fator subjetivo mais profundo para a adesão de quadros internos de uma empresa a trends que lhes são, a bem da verdade, alheios: o fato de que o próprio trabalho do empregado lhe é alheio (como em “alienação do trabalho”, em termos mais diretos). Isso eu claramente experimentei durante meu tempo no meu trabalho: criar novos projetos traz novidade onde o trabalho em si começava a estagnar. Além disso, e principalmente, é através de projetos com pretensões maiores que destaca-se dentro de uma empresa, chamando atenção dos figurões acima do seu próprio cargo. O fato é que abundam profissionais que querem vender meras canetas como se fossem um sonho de consumo9, embora ao menos tais falastrões tenham alguma astúcia a mais do que aqueles que claramente não entendem nada do que estão querendo vender, por malícia10 ou por burrice11.


Referências

Footnotes

  1. Por exemplo, vide Empiricus. Não à toa o símbolo de Wall Street é um touro. Da B3 também, aparentemente… ai de nós.

  2. Por exemplo o artigo de 2022 de Sankar Das Sarma pelo MIT Technology Review, Quantum computing has a hype problem | MIT Technology Review. Digamos que o cara não é um zé-ninguém.

  3. Large Language Models, dentre os quais se destaca o ChatGPT (Generative Pre-trained Transformer). O impulso todo que LLMs estavam por alcançar, através da arquitetura de “Transformers” – ela própria um marco extremamente recente de redes neurais, vinda do famoso artigo “Attention is All You Need” de 2017 –, é previsto, por anunciado, na ótima palestra “LSTM is dead. Long Live Transformers!” de Leo Dirac.

  4. Eu próprio não fazia ideia que isso existia, descobri enquanto estava escrevendo.

  5. Pensando em difusão de inovações, há um retorno menor para aqueles que “chegaram tarde” para a festa.

  6. Angel investor - Wikipedia.

  7. Isso é ameaçadoramente similar ao que aconteceu na bolha imobiliária de 2007, diga-se de passagem…

  8. Ok, no Brasil essa palavra é mais difícil de aparecer, o inglês corporativo não chegou tão longe ainda.

  9. Como n’O Lobo de Wall Street.

  10. Como o certificado de quântica para business, para se preparar para a quantum transformation! Imagine a pachorra de tentar vender isso para algum CEO!

  11. Imagine colocar prompt engineer no seu LinkedIn! Não importa que não signifique nada, importa que tenha outros idiotas que caiam no conto e te valorizem por isso.