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Monografia que escrevi para a disciplina Teoria da História II (de Jorge Grespan), sobre porque a Sociologia não pode ser uma Filosofia da Práxis segundo Gramsci.


O que é filosofia da práxis, segundo Gramsci

Dado que o ato de buscar padrões e teorizar sobre o mundo é uma característica inerentemente humana, Gramsci argumenta que “todo homem é um filósofo”, embora nem sempre o seja de forma coerente ou totalmente correta: herdamos tanto as condições históricas e materiais quanto a tradição intelectual e cultural daqueles antes de nós. Ao ato de não deixar-se levar pelas aparências do senso comum e da “religião”, e sim de buscar conhecer-se historicamente e elaborar seu conhecimento de maneira crítica, Gramsci chama de “filosofia”.

A filosofia é, portanto, um conhecimento elaborado e coeso, oposto ao senso comum herdado da sociedade em que se vive (embora construído a partir deste mesmo), o qual é fragmentário e uma mera “soma das partes” de conhecimentos disjuntos e até contraditórios (“um conjunto desagregado de ideias e de opiniões”1). Portanto, para tal elaboração do conhecimento existente, é preciso que se tenha sempre em mente a historicidade tanto de si próprio quanto do corpo do conhecimento que compõe nossa visão de mundo; ao fazê-lo, encontra-se um “núcleo sadio” do senso comum, ao qual Gramsci chama de “bom senso”.

Visando sempre o conhecimento geral do “bom senso”, busca-se que tal concepção de mundo seja a visão comum da sociedade, o que claramente não ocorre de forma trivial, posto que em geral existe alguma cisão entre os intelectuais e a massa (ou os “simples”), a qual vê a realidade de maneira imediata e subordinada acriticamente (em maior ou menor grau) ao senso comum vigente, de acordo com a filosofia dos dominantes. Tal vínculo entre ambas as partes, porém, somente pode ser duradouro porquanto for orgânico, ou seja, quando surgirem intelectuais diretamente das massas, os quais possam elaborar “os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática”2, invés de, por exemplo, herdarem alguma filosofia externa e contraditória à sua própria visão “cotidiana” de mundo.

Surge então o que Gramsci chama de filosofia da práxis: uma “superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente”3, tanto do senso comum quanto da “filosofia dos intelectuais”4. Tal elaboração de uma concepção de mundo se faz justamente para conceder às massas as “armas da crítica” para agir sobre o mundo, ao fornecer-lhe uma “direção” à qual guiar a sociedade. Também pois, quando há uma dissonância cognitiva entre o fazer e o pensar (que amiúde ocorre em concepções de mundo fundadas no senso comum), pode surgir um “estado de passividade moral e política”5, induzindo a paralisia e um estado de contemplação alienada e fatalista com relação à realidade6.

O que é sociologia, e por que a filosofia da práxis não o é

Para Gramsci, a sociologia surge como uma tentativa de trazer o método científico das ciências exatas ao estudo das sociedades, ao buscar as “leis de evolução” que descrevem sua “dinâmica” ao longo do tempo. Dessa forma, relações determinísticas e estanques substituem as relações dialéticas7, e buscam-se, invés de partir dos fatos da realidade concreta, esquemas e classificações “gerais” dentro das quais tais fatos históricos particulares “encaixem-se”.

A filosofia da práxis, por outro lado, “se realiza no estudo concreto da história passada e na atividade atual de criação de uma nova história”8; ou seja, invés de buscar tendências históricas genéricas e encaixar o momento histórico neste ou naquele esquema (como a sociologia faz), buscam descrever os fenômenos partindo do “solo da história real”9; a compreensão efetiva da realidade não vem de “cima para baixo”, mas “de baixo para cima”, através da relação dialética entre teoria e práxis.

Ao buscar “catalogar” a história e a sociedade, a sociologia pressupõe que “as massas da população [permaneçam] essencialmente passivas”10, ou seja, com comportamento previsível e estacionário11, dentro da “ordem das coisas”, da mesma forma que as ciências naturais pressupõem a previsibilidade de seu objeto. Há claramente uma contraposição com a ação política, a qual, segundo Gramsci, “tende, precisamente, a fazer com que as multidões saiam da passividade12, com que quebrem e substituam a ordem social vigente por alguma forma social que lhes seja própria; ou seja, que tornem-se autônomas, de ditarem seus próprios rumos, por assim dizer, e que possam “desembaraçar-se de toda a antiga imundície [da sociedade superada] e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade”13.

Gramsci chama a filosofia implícita na sociologia do Ensaio Popular de Bukharin de “idealismo invertido”, no sentido de que “conceitos e classificações empíricas substituem as categorias especulativas, [ainda que] tão abstratas e anti-históricas quanto estas”14; ou seja, dizendo que somente afirmar-se como um estudo da realidade “concreta” não faz, por si só, que tal empreitada seja uma visão, de fato, concreta da realidade. Pior ainda: Gramsci afirma que, frequentemente, o que é feito na sociologia é dar-se um “nome coletivo a uma série de fatos miúdos”; o que faz-se, portanto, é um mero ato de inventariante, de manter-se na superfície dos fatos e insistir em sua semelhança, invés de buscar o motivo ulterior pelo qual tais fenômenos são semelhantes “a olho nu”, incorrendo-se na mera “duplicação do próprio fato observado”15.

Por outro lado, a filosofia da práxis busca justamente ser a superação das velhas filosofias, incorporando à sua composição somente o que componha o “núcleo sadio” do senso comum prévio e descartando tudo aquilo que lhe seja contingente; por isso Gramsci diz que ela “’basta a si mesma’, contendo em si todos os elementos fundamentais para construir uma total e integral concepção do mundo” e que “não tem necessidade de sustentáculos heterogêneos”16, ao contrário da sociologia, que pressupõe o “positivismo evolucionário” de maneira externa e temerária. E nisso vê-se o caráter “compósito” e bizarro da sociologia, como sendo uma tentativa de impor ao estudo da realidade social uma filosofia/concepção de mundo “impermeável” a esta (leia-se, o “positivismo evolucionário”, segundo Gramsci); dessa forma, não consegue nem a “unreasonable effectiveness17 das ciências naturais em descrever e prever seu objeto com teorias e precisão matemáticas, nem de abarcar de maneira “natural” o dinamismo e a complexidade da realidade social em seu método; talvez, por isso mesmo, Gramsci pudesse considerá-lo uma “reasonable uneffectiveness” da sociologia…

Se faz bem claro que, enquanto a sociologia busca apresentar-se como uma concepção contemplativa e determinística da sociedade (tal qual as ciências exatas o são com relação à natureza), a filosofia da práxis busca ser o completo oposto: busca ser a concepção de mundo construída organicamente pelas massas e pelos intelectuais orgânicos que dali surjam, os quais constroem uma visão de mundo através de uma relação dialética entre sua práxis e sua elaboração teórica, não de maneira desconexa e perpassada por fragmentos desconexos do “folclore” herdado por sua cultura, mas através de um “‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido”18; tudo isso de maneira não a somente compreender a realidade em que vivem, mas para que adquiram o protagonismo ante à sua realidade por meio da ação social coletiva e, anzitutto, revolucionária.

Footnotes

  1. GRAMSCI, Antonio; COUTINHO, Carlos Nelson. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 98.

  2. Idem, p. 100.

  3. Id., p. 101.

  4. A qual pode ser vista como “‘culminâncias’ de progresso do senso comum”, justamente quando vista de maneira histórica, e por isso mesmo passíveis de tornarem-se fragmentos isolados em uma amálgama casual de ideias de algum senso comum posterior, caso apreendidas a-historicamente.

  5. Id., p. 103.

  6. Por exemplo, com a noção da atomização capitalista do trabalho induzir com que “a personalidade [torne-se] o espectador impotente de tudo o que ocorre com a sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho” (LUKÁCS, G. “A reificação e a consciência do proletariado”. In: História e Consciência de Classe. Martins Fontes, 2003, p. 205).

  7. “A lei de causalidade, a pesquisa da regularidade, da normalidade, da uniformidade, substituem a dialética histórica” (GRAMSCI, p. 121).

  8. Id., p. 151.

  9. “[A concepção de história na filosofia da práxis] não tem necessidade, como na concepção idealista da história, de procurar uma categoria em cada período, mas sim de permanecer constantemente sobre o solo da história real; não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações ideais a partir da práxis material” (MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã, Boitempo, 2015, p. 42-3; grifo meu).

  10. GRAMSCI, p. 147.

  11. Emprego o termo analogamente à área matemática de Equações Diferenciais em geral: uma solução matemática de uma ED possui uma fase inicial, chamada transiente (errática mas efêmera), e uma posterior fase estacionária (mais previsível, duradoura a longo prazo/assintoticamente).

  12. Id., p. 147-8; grifo meu.

  13. MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã, Boitempo, 2015, p. 42.

  14. GRAMSCI. p. 121; grifo meu.

  15. Id., p. 151.

  16. Id., p. 152.

  17. Alusão ao famoso artigo de Eugene Wigner, “The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences”.

  18. Id., p. 94.