up:: 013 MOC Lukács
Introdução
GL ─ Reificação é contraponto de Fetichismo da Mercadoria. Trata-se do fato de
“uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa forma, de uma ‘objetividade fantasmagórica’ que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens.” (LUKÁCS, p. 194)
Trata-se aqui do capitalismo já estabelecido, ou seja, em sociedades nas quais a Forma-Mercadoria espalha-se para além das fronteiras entre as comunidades — nas quais Valores de Uso tornam-se valores de troca justamente por serem excedentes (não-úteis) para seus possuidores originais, e úteis para outrem; são, portanto, traocas contingentes.
Com o tempo, nessas sociedades, a forma-mercadoria introjeta-se para dentro das comunidades, “no conjunto das manifestações [de vida] da sociedade”, de uma forma essencial: não é que os produtos do Trabalho tornam-se Mercadorias, e sim que passam a ser produzidos como mercadorias.
“A relação quantitativa, segundo a qual os produtos são trocados, é totalmente contingente de início. Eles assumem a forma de mercadorias tão logo sejam passíveis de troca em geral, isto é, tão logo sejam expressões de um terceiro elemento. O prosseguimento da troca e a reprodução regular para a troca reduzem cada vez mais esse caráter contingente. Inicialmente, não para os produtores e consumidores, mas para o intermediário entre os dois, o comerciante que compara os preços monetários e embolsa a diferença. Com esse movimento, ele estabelece a equivalência. No início, o capital comercial é apenas o movimento de mediação entre extremos que não domina e condições que não cria.” (MARX apud LUKÁCS, p. 197; grifo meu)
Aparece primeiramente para o intermediador, justamente porque ele é o responsável por intermediar a troca entre produtores privados! É aqui que, efetivamente, os trabalhos assumem caráter abstrato!
Ou seja, o que ocorre é uma inversão: originalmente, a mercadoria era fenômeno contingente, consequência do excedente das comunidades que eram trocados com outras; com o tempo, ela passa a ser fenômeno essencial, causa primeira da produção das comunidades!
Dessa forma, essa introjeção do caráter mercantil — a reificação, Fetichismo da Mercadoria — manifesta-se sobre o lado objetivo e o lado subjetivo do trabalho: objetivamente, o próprio trabalho aparece ao trabalhador como algo objetivo, sua Força de Trabalho, que é “independente dele e que o domina por leis próprias, que lhes [sic] são estranhas” (LUKÁCS, p. 199); subjetivamente, tal mercadoria submete-se a leis estranhas aos homens, “e deve executar seus movimentos de maneira tão independente dos homens como qualquer bem destinado à satisfação de necessidades que se tornou artigo de consumo” (p. 199-200) — ou seja, ele agora é possuidor de uma mercadoria, a força de trabalho, cujo valor de uso será usufruído por outrem, e não é útil (logo não diz respeito) aos trabalhadores!
Essa igualdade formal das mercadorias — sua posse de trabalho humano abstrato — não é mais algo contingente, que emerge das trocas das mercadorias, e sim “o princípio real do processo efetivo de produção de mercadorias” (p. 200). É justamente quando a força de trabalho torna-se mercadoria que os produtos do trabalho passam a nascerem como mercadorias, invés de porventura tornarem-se tais.
Sobre o trabalho abstrato, escreve Lukács:
“Nossa intenção aqui não pode ser, evidentemente, a de descrever, mesmo como esboço, esse processo, o nascimento do processo moderno do trabalho, do trabalhador ‘livre’ e isolado, da divisão do trabalho etc. Trata-se somente de constatar que o trabalho abstrato, igual, comparável, mensurável com uma precisão crescente em relação ao tempo de trabalho socialmente necessário, o trabalho da divisão capitalista do trabalho, que existe ao mesmo tempo como produto e condição da produção capitalista, surge apenas no curso de desenvolvimento desta e, portanto, somente no curso dessa evolução ele se torna uma categoria social que influencia de maneira decisiva a forma de objetivação tanto dos objetos quanto dos sujeitos da sociedade emergente, de sua relação com a natureza, das relações dos homens entre si que nela são possíveis.” (p. 200-1; grifo meu)
A generalização da forma-mercadoria
É o processo de abstração do trabalho, perpetrado pelo avanço histórico da forma mercantil, que induziu (?) o processo de Acumulação Primitiva do Capital, criando condições nas quais a Força de Trabalho torna-se mercadoria.
Não é o processo de homens venderem sua capacidade de trabalho que os induziu a verem seu trabalho como abstrato, e sim o trabalho ser considerado abstrato, pelos capitalistas, que é pré-condição para o despojamento1 das terras comuns, enclosures, “liberação” dos trabalhadores, etc., i.e. para que indivíduos vendam suas capacidades como mercadoria.
Mais do que isso, não só vende sua capacidade de trabalho, como vende-a referente a trabalho abstrato, i.e. está à mercê do tipo de trabalho concreto de seu contratante. Historicamente, e logicamente, tal trabalho torna-se mais e mais simplificado, via Divisão do Trabalho (Manufatura e Maquinaria), ou, como diz Lukács, mais racionalizado, o que também permite que torne-se mais calculável, e seus resultados, mais previsíveis.
Nesse ínterim, da generalização da forma-mercadoria, suas leis tornam-se “poderes intransponíveis” (p. 199) ao homem, tal qual leis da natureza, que ele pode empunhar, mas nunca alterar. (Fenômeno Emergente)
A parcialização do trabalho
A fragmentação do trabalho faz com que, junto à separação das etapas dos trabalhos concretos, rompa-se a “unidade orgânica” dos produtos acabados. É neste sentido que Lukács diz que “a racionalização é impensável sem a especialização” (p. 202): é justamente como consequência da segmentação do trabalho em suas etapas que os produtos passam a ser unidos posteriormente, contingentemente, invés de serem criados organicamente.
“A unidade do produto como mercadoria não coincide mais com sua unidade como valor de uso. A autonomização técnica das manipulações parciais exprime-se também economicamente na capitalização radical da sociedade, pelo acesso à autonomia das operações parciais, pela relativização crescente do caráter mercantil de um produto nas diferentes etapas de sua produção. Sendo assim, é possível separar a produção de um valor de uso no espaço e no tempo. Isso costuma ocorrer concomitantemente com a união no tempo e no espaço das manipulações parciais que, por sua vez, encontram-se relacionadas a valores de uso inteiramente heterogêneos.” (p. 203)
Nesse ínterim, a experiência subjetiva do trabalhador é uma de dispensabilidade, de obsolescência, de substituibilidade: sua importância ao trabalho não se dá mais com relação a sua pessoa, e sim com seus “nervos, músculos, cérebro, etc.”; não se dá por meio de seu trabalho concreto, qualitativo, e sim de seu trabalho abstrato, quantitativamente medido em horas.
“O homem não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter.” (p. 203-4)
O trabalho torna-se algo contemplativo, passivo — e isso é extremamente pertinente no trabalho corporativo, em que coisas vêm e vão, e nunca se sabe de onde nem para onde; o que importa é resolver o que vier, nunca de ditar o que será. Isso também ocorre psicologicamente, introjetadamente:
“…seu trabalho fragmentado e mecânico, ou seja, a objetivação de sua força de trabalho em relação ao conjunto de sua personalidade — que já era realizada pela venda dessa força de trabalho como mercadoria —, é transformado em realidade cotidiana durável e intransponível, de modo que, também nesse caso, a personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com a própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho.” (p. 205)
O tempo de trabalho abstrato como tempo abstrato
“Com a subordinação do homem à máquina, os homens acabam sendo apagados pelo trabalho, o pêndulo do relógio torna-se a medida exata da atividade relativa de dois operários, tal como a medida da velocidade de duas locomotivas. Sendo assim, não se pode dizer que uma hora [de trabalho] de um homem vale a mesma hora de outro, mas que, durante uma hora, um homem vale tanto quanto outro. O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito, é a personificação do tempo. A qualidade não está mais em questão. Somente a quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jornada.” (MARX apud LUKÁCS, p. 204-5; grifo meu)
Dessa forma, o tempo perde seu caráter qualitativo — dia e noite, estações, envelhecer, folhas das árvores —, e assume um caráter abstrato; “ele se fixa num continuum” delimitado com precisão, qualitativamente mensurável, pleno de ‘coisas’ quantitativamente mensuráveis […]; torna-se um espaço.”, o que é “condição e consequência da produção especializada e fragmentada, no âmbito científico e mecânico, do objeto de trabalho” (p. 205). É condição porque é o pressuposto da mensuração do trabalho abstrato; é consequência porque é o que todos os trabalhos qualitativamente distintos em um processo de produção possuem em comum (abstração real).
Referências
- Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”. In: História e Consciência de Classe. Martins Fontes, 2003.
- Formas de objetividade e de subjetividade capitalistas (Monografia Lukács)
- Aula VII - Györgi Lukács: O fenômeno da reificação, parte I, vídeo 1 (Jorge Grespan, Teoria da História II)
- Aula VIII - Györgi Lukács, O fenômeno da reificação, parte I, vídeo 2 (Jorge Grespan, Teoria da História II)
Footnotes
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Num sentido deliberado. ↩