up:: Uma visão etnográfica da Faria Lima
Disclaimer: Estes textos são sobre minha breve passagem, em uma só empresa, no meio corporativo. Porém, percebo padrões que sinto que sejam presentes a este meio como um todo. Estes textos não são justificações ou enaltecimentos deste ambiente e de seu habitus; são, antes de tudo, uma espécie de vista etnográfica desse meio, podendo ser de interesse particular para quem esteja totalmente alheio a este ambiente ─ e em particular de quem fala tanto sobre a Faria Lima como recursos retóricos, mas que não faz ideia da realidade de seus próprios argumentos.
Anteriormente:
Algo que adotei logo que comecei a trabalhar no meio corporativo ─ em particular quando voltamos ao regime presencial ─ é de deixar minha política no cabide metafórico da entrada do escritório. É engraçado porque, mesmo para os indivíduos mais conservadores, essa é a estratégia mais eficiente aos negócios: o exemplo mais claro para mim é a questão do aquecimento global, pois, em particular no tocante a seguros rurais (agrícola/animais/propriedade rural), aqueles que insistirem em misturar sua ideologia pessoal de negacionismos com os seus negócios serão aqueles que serão tragados pela competição após o banho de água fria da realidade material abatendo-se sobre a saúde de sua carteira.
Por uma ironia do destino, a melhor forma de tocar os negócios é de ser um perfeito “materialista”1, a despeito de tal ato conflitar com ideologias pessoais: assim como o sonho da razão produz monstros, a aceitação acrítica do mundo etéreo da imaginação e do achismo, sem submetê-los à comprovação do mundo material, não têm (ou desejaria-se que não tivessem) espaço no meio corporativo.
Portanto, é neste sentido que eu diria que “o mercado come boas intenções de café da manhã”: pois, se é detrimental aos negócios2, então é uma Estratégia Dominante não deter-se sobre tais subjetividades. Operações comerciais são decisões acertadas racionalmente3, com todos os riscos quantificados e tidos em mente: os ônus e bônus da empreitada, e possíveis danos reputacionais4 (que, no fim do dia, entram como custos à operação).
Usemos um exemplo: caso algum banco, de repente, pronuncie-se contra o agronegócio por motivos xyz5, e se recuse a atendê-los, então este mesmo banco martelou o último prego de seu próprio caixão, ao expurgar não só todo o possível lucro desta área barrada, como também alguns outros clientes cautelosos que possua em outros segmentos e que possam tornar-se receosos (por exemplo empresas da indústria de agrotóxicos, da indústria alimentícia, mineradoras, etc); de qualquer forma, invariavelmente terão a fúria de seus investidores abatendo-se sobre si.
No fim das contas, essa decisão “moral” de nada valeu no grande esquema das coisas, pois ou este banco vai ser abandonado por seus próprios investidores e cair sob seu próprio peso, ou seus investidores farão uma bela limpa no quadro de funcionários para assegurar que seja feita sua vontade por alguém melhor alinhado a seus interesses (o que não faltará no mercado); em resumo, ou será absorvida por outros players que adotem a estratégia dominante, ou correrá atrás de adotá-la por si própria a fim de se manter no jogo. No fim das contas, é como Bacon diz em um de seus ensaios: “É certamente melhor convidar para os negócios um homem algo obtuso [somewhat absurd] do que um que seja formal demais [over-formal]” (BACON apud OLIVEIRA, p. 64; destaques meus).
Sob esse ponto de vista, é cabal a conclusão de que tais comportamentos de conformidade de entidades capitalistas (ao menos de entidades financeiras) a negócios moralmente questionáveis são intrínsecos ao sistema capitalista, e, portanto, é insuficiente uma crítica moral e propostas individualistas de mudança sistêmica6. Apelar para a moral de genuínos capitalistas, portanto, tem somente uma resposta: “morais, morais ─ negócios à parte”. Inclusive, o próprio trabalho de escritório é condutivo à abdicação de questionamentos morais7 durante o trabalho; onde concerne a “moral”, estes questionamentos são feitos somente no tocante à questão de “danos reputacionais” ante ao mercado (em verdade quer-se dizer: ante aos investidores). Ou seja, mesmo a moral dentro do contexto corporativo é “reconduzida ao conceito calculador” (LUKÁCS, p. 202).
Em verdade, a efetiva submissão da vida humana e de todas as suas subjetividades à eficiência parece ser um fenômeno que passou a predominar a partir da alvorada da modernidade ocidental, como consolida-se nos trabalhos de Francis Bacon. Como diz Pedro Rocha de Oliveira em seu livro “Discurso Filosófico da Acumulação Primitiva”,
“A situação lógica do sujeito baconiano é tal que, se ele converteu em meios eficazes os principais aspectos [objetivos e subjetivos] de sua vida, acaba dotando a centralidade dos meios de importância teleológica: se a finalidade da vida é se dar bem, a eficiência torna-se um fim em si mesma. Os valores, comportamentos e afecções são úteis de modo a serem úteis, funcionam de modo a funcionarem, o sujeito se instrumentaliza de modo a instrumentalizar-se.” (p. 71; grifo meu)
Ou seja, o fazer eficiente “emancipa-se” de uma necessidade por eficiência: a própria eficiência é motivação suficiente; invés de ser um meio (mais eficiente, justamente) a um fim, torna-se um fim em si mesma, uma obsessão cega8.
Os trabalhos de Bacon não são os fundadores desses fenômenos sociais/psicológicos/políticos etc de sua época; são mais uma culminação e autoconscientização de certos indivíduos num contexto histórico particular: capitalistas emergentes nos primórdios de uma nova conformação socioeconômica. Um bom balizador dessa época histórica são os Cercamentos (leia-se: privatização por meios violentos, “a assim chamada acumulação primitiva”) de terras comunais na Inglaterra, intensificadas no século XVI. Quem diria que não foi Deus nem os camponeses que deram a posse das florestas aos aos capitalistas que as desmataram?
Não é incidental que o pensamento destes indivíduos de outrora seja basicamente o mesmo o pensamento hegemônico de hoje. Essa ideologia certamente não era a mentalidade dos camponeses e “povo comum” que foram usurpados de suas terras e florestas comunais nos séculos XVI e XVII – e que, em particular, ainda são usurpados no Brasil do século XXI. Talvez não seja incidental também que a maioria das pessoas que trabalham na Faria Lima não são os chefões que querem conduzir seus portfólios com a máxima racionalidade, e sim meros trabalhadores que querem pagar suas contas e ter que pensar o mínimo necessário em coisas nas quais, no final do dia, não são mais do que peões movidos num tabuleiro.
Referências
- DE OLIVEIRA, Pedro Rocha. Discurso filosófico da acumulação primitiva: estudo sobre as origens do pensamento moderno. Editora Elefante, 2024.
- O ensaio de Bacon supracitado pode ser encontrado em The Works of Francis Bacon/Volume 1/Essays/Of Seeming Wise - Wikisource, the free online library.
- Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”. In: História e Consciência de Classe. Martins Fontes, 2003.
- MARX, Karl. O capital-Livro 1: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. Boitempo Editorial, 2013.
Footnotes
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Pode-se pensar também em “método científico”: não aceitar suposições sem que elas sejam validadas devidamente, em geral através de dados. ↩
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E se não for um custo obrigatório, p. ex. legislação que envolva ESG, vide Sobre ESG no meio corporativo e ESG é uma versão meramente formal de sustentabilidade. ↩
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Principalmente no meio financeiro, onde operações têm valores de milhões de reais. Mas, diga-se de passagem, embora as operações sejam, sim, racionalmente tomadas, muitos dos indivíduos responsáveis por elas tendem a não ser perfeitos homo oeconomicus… ↩
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Que são algo que é tão vago quanto é crucial para uma empresa, especialmente com o avanço de ESG sobre o meio corporativo. ↩
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Caso queira alguns motivos, recomendo Série “Muito Além da Porteira” d’O Joio e o Trigo. Humildemente deixo também meus breves escritos: Resumo da apresentação O País do Agro é o País da Fome. ↩
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Em “economês”: mudanças de comportamentos individuais ceteris paribus pouco farão por uma genuína mudança sistêmica. ↩
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Destacando que tal “abdicação de moral” não quer dizer, necessariamente, que as tomadas de decisão internamente feitas pelos funcionários/“subordinados” são imorais ─ tendem a ser a-morais e “objetivas”. Além disso, vale destacar que “abdicação de questões morais” no ambiente de trabalho não equivale a que tal trabalho seja irracional ou ignorante. Inclusive, é muito fácil fazer um trabalho de analista de dados sem saber o que os números representam na realidade: o significado destes números (quase) parece ser um “capricho” contingente, ao invés de os números serem a abstração ideal de fenômenos verdadeiramente reais. ↩
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Nos ambientes de programação, essa tendência foi parcialmente captada na máxima de Donald Knuth de que “otimização prematura é a raíz de todo mal”. A citação inteira é maior: “Programmers waste enormous amounts of time thinking about, or worrying about, the speed of noncritical parts of their programs, and these attempts at efficiency actually have a strong negative impact when debugging and maintenance are considered. We should forget about small efficiencies, say about 97% of the time: premature optimization is the root of all evil”, ao que ele logo emenda “Yet we should not pass up our opportunities in that critical 3%”, cf. Structured Programming with go to Statements e wiki.c2.com/?PrematureOptimization. ↩