Estamos atualmente em uma encruzilhada na história deste país ─ mais uma para a conta.

De um lado, povos que são forçados a lutar por sua sobrevivência há 523 anos; que luta não por puro capricho ou status, mas para que não sejam atropelados pelo rolo compressor da história, da ordem do capital e do progresso rumo à extinção. Do outro, os filhos dos filhos deste pecado original que foi trazido para estas terras há 523 anos atrás.

Os primeiros, um povo que foi expulso de suas próprias terras por estrangeiros, e que foi forçado a assisti-los assentarem-se com ares de profanos demônios; os últimos, os mesmos homens que sangraram as veias destes povos originários, secaram os veios dos rios em sua maldita febre áurea, e que transmutam a vitalidade da terra em projeto de morte.

Não obstante esta oposição inconciliável, o Estado brasileiro claramente alia-se a favor de um dos lados ─ assim como sempre o fez ─, e concede a caneta e o papel para que os exploradores ditem o destino dos explorados. Não basta as chuvas de agrotóxicos que caem sobre as cabeças das crianças indígenas, agora querem que a arbitrariedade de sua história e de suas datas particulares sejam a régua pela qual medem toda a história deste lado do continente.

”A devastação da mata em larga escala ia semeando desertos estéreis atrás do colonizador, sempre em busca de solos frescos que não exigissem maior esforço de sua parte.
(…) [O caráter da economia colonial brasileira] faz convergir para um único fim, com o objetivo de um máximo e momentâneo proveito, todas as atenções e esforços; verdadeiro processo de bombeamento dos recursos naturais do solo, ‘agricultura extrativa’, já se denominou.” (Caio Prado Jr, p. 135; grifo meu)

Há anos que as raposas deste país estão fazendo de tudo para conseguir todas as chaves dos galinheiros. O pudor sequer precisa ser acobertado, e desde o absurdo Titula Brasil, que concede o papel de titulação de terras aos municípios (e não mais ao poder público), até o Marco Temporal, vemos cada vez mais a morte matada da autonomia dos povos originários deste país. Não bastasse toda a violência das balas e dos discursos ruralistas, agora sequer a Justiça brasileira precisa disfarçar que lava suas mãos com sangue indígena.

A televisão mostra somente os rostos dos grandes proprietários de terras, não seus braços escravizados; mostra seu discurso pop, e não a realidade crua. Nelson Jahr Garcia o coloca muito bem quando diz que tal espécie de discurso “esconde quais são os interesses reais existentes por trás da ideologia, ao mesmo tempo que oculta a realidade vivida pelos receptores, para que estes não possam formular outras idéias que melhor correspondam à sua posição” ─ tanto mais difícil se torna quando sequer veem a necessidade de questionar-se sobre o mundo em que vivem… ou quando veem-se derrotados ao fazê-lo. E aqui jaz uma das principais tarefas revolucionárias: explicitar todo o jogo sujo que fomente e consolide tais estruturas de opressão, para permitir que todos possam vê-las como se à luz do dia ─ e trazer à tona alternativas (verdadeiramente) democráticas e livres de opressão.

O conquistador branco é incapaz de conceber a terra como algo que não se deva conquistar; vê as terras férteis ou vendidas, ou alugadas, ou plantadas com commodities, e vê as terras inférteis como algo descartável, desprezível. Da mesma forma, é incapaz de conceber como é viver constantemente com o medo de ser desterrado ─ pensamento ao qual facilmente pensaria “ora, que comprem outra casa então!“. Talvez como sintoma ou como consequência, pela nossa própria língua (querendo ou não, herança do colonialismo) vemos a dificuldade de expressar a ideia de “nossa terra” sem ser por um termo que é sinônimo de posse ─ quando, aos povos indígenas, vive-se em conjunto com a Natureza, não em oposição a ela; não possui-se a terra, mas coexiste-se com ela. E em seu processo de exploração, expropriação e lucro, semeia desgraças tanto quanto semeia desertos sem vida. Onde víamos o trabalho digno de pequenas famílias agricultoras, hoje vemos um indistinto mar de dólares dourados. Onde antes havia a sinfonia da vida complexa, hoje reina o uníssono da monocultura. O solo que antes era grumoso e fértil, hoje é arenoso e estéril. A virilidade intrínseca da Terra de outrora hoje é uma eutanásia à base de agrotóxicos.

O agromineronegócio de hoje é o mesmo parasita de ontem, parasita do sangue e parasita da terra ─ em suma, parasita da vida. Sequer seus sobrenomes mudaram; sequer a lei férrea do coronel foi a lugar algum. O que muda de ontem para hoje é que antes o latifundiário tinha de agir de próprio bolso, e hoje é pago pelo Estado para que faça sua matança. O latifundiário viola as entranhas da Terra, e colhe desertos cada vez maiores. Caio Prado Jr. já anunciou, há quase um século, que a exploração do agronegócio de hoje é tão crua e sem escrúpulos quanto a colonização de outrora, e tal qual um vampiro, vive tanto mais quanto mais vida suga.

Dessa forma, de acordo com a ideologia artificial das classes dominantes, fomos todos expropriados da verdade ancestral de que todos fazemos parte da mesma Natureza. Por mais que o cinza da cidade nos faça esquecer de nossas raízes, a Mãe-Natureza faz-se ver e ouvir, a despeito de todos os assédios perpetrados pelo capital ─ afinal, quem não viu o dia virar noite no Dia do Fogo em 2019? Essa foi uma das provas mais viscerais, para os últimos céticos, de que não podemos fugir de nosso vínculo com a terra, e de nossa conexão com nossas florestas. Por baixo de toda rua asfaltada há milhões de anos do ciclo da vida que, em algum momento, deu origem à nossa espécie. E destaque-se que é desleal que toda a responsabilidade da crise climática caia sobre as costas dos povos indígenas, só porque eles “já são” os guardiões da floresta e a linha de frente do combate ao aquecimento global ─ esta responsabilidade ainda é do capital, e não devemos perder isto do horizonte, por mais que surjam objetivos superficiais que sejam propostos pelas organizações mundiais “ecocapitalistas” como soluções viáveis (como o famigerado 1,5ºC).

Há anos que o projeto do Marco Temporal está como uma nuvem negra sobre as cabeças dos povos originários. Mesmo que não seja aprovado no dia 07 de junho de 2023 no STF, a nuvem permanecerá atormentando-os; o precedente foi aberto, e a bancada ruralista já está há anos testando os limites do possível e do aceitável dentro do Congresso brasileiro. Afinal, somente os ingênuos e os cínicos acreditam em um agronegócio sustentável.

Os protagonistas desta luta são os povos originários. Devemos, enquanto militância não-indígena, ajudá-los em sua luta contra esta opressão histórica que sofrem. Tal qual a Mãe-Natureza, que sua voz retumbe como relâmpago por todos os cantos; que façam sua voz ser ouvida, por bem ou por mal. Os povos indígenas nunca sofreram calados; sempre foram calados. É nosso dever, enquanto militância ─ e, em particular, enquanto ecossocialistas ─ nos opormos firmemente a esta opressão perpetuada há 523 anos, e de dar-lhes a voz que precisam nos espaços em que estejam excluídos.

Unidos no luto; reunidos na luta.

Não ao Marco Temporal. Vida longa a Abya Yala!

Referências