up:: Uma visão etnográfica da Faria Lima
Disclaimer: Obviamente estes textos são sobre minha breve passagem, em uma só empresa, no meio corporativo. Porém, percebo padrões que sinto que sejam presentes a este meio como um todo. Estes textos não são justificações ou enaltecimentos deste ambiente e de seu habitus; são, antes de tudo, uma espécie de vista etnográfica desse meio, podendo ser de interesse particular para quem esteja totalmente alheio a este ambiente ─ e em particular de quem fala tanto sobre a Faria Lima como recursos retóricos, mas que não faz ideia da realidade de seus próprios argumentos.
Pela minha brevíssima experiência no meio corporativo, se não é o tempo de trabalho que tem que ser sempre otimizado, então que nunca se perca de vista o objetivo cabal da empresa: de levar oferendas dignas aos nossos stakeholders, que sentam-se impávidos em seu Monte Olimpo, (geralmente) no Primeiro Mundo.
Não só o lucro da empresa em que se trabalha, mas o retorno aos seus investidores1 é o ponto crucial que movimenta todas as engrenagens e os discursos da Faria Lima. Quaisquer empreitadas intelectuais “externas” ao business as usual2, que tenham aval de uma dada empresa ─ com custos monetários da própria empresa e/ou de horas extras dos funcionários envolvidos ─, devem ter em mente, em seu bojo, este objetivo sempre em vista.
Contudo, assim como Deus não consegue se manifestar aos seres humanos senão em sua forma humana, stakeholders fazem sua obra ser cumprida, nas empresas que têm em seu bolso, através de CEOs e managers, cargos que vão percolando até o fundo da organização.
Não obstante isso, mesmo em sua forma humana, permanece uma gigantesca dissonância das visões de cargos mais altos com relação aos cargos mais “baixos”. Na prática, quanto mais alto o cargo, mais distante do “solo do mundo real” essa pessoa estará, e mais mirabolantes e descoladas da realidade tenderão a ser suas demandas top-down3 ─ as quais deverão, integral ou parcialmente, ser acatadas (devido à hierarquia de poder, obviamente).
Sobre a trivialidade do trabalho
Outra coisa também, óbvia mas que merece menção, é a trivialidade com que resultados entregues são recebidos pelos superiores, e quão trivial é receber de volta a demanda de “dobrar a meta, então”, desprezando todo o sacrifício despendido em seu cumprimento. Assim como mercadorias, resultados entregues aparentam ser “uma coisa óbvia, trivial”.
Dessa forma, a otimização do tempo de trabalho se torna uma obrigação: o ano só tem tantos dias e tantas semanas, e não raro os feriados tornam-se entraves aos prazos curtos de entregas e apresentações de resultados4. Olhando pela superfície, esse é o motivo pelo qual horas extras são tão prevalentes, e até forçadas em certos casos não-tão-incomuns… mas sempre acatadas de livre e espontânea vontade, é claro5. Não é um choque tão grande que constate-se o surgimento de bullshit jobs: quando a recompensa de trabalho eficiente acaba sendo mais trabalho ainda, desincentiva-se a eficiência no trabalho.
No fim das contas, the proof is in the pudding: o motivo para tudo isso é sempre o cumprimento das expectativas dos investidores da empresa6. Mover-se-iam montanhas se isso fosse possível, mas o que está às mãos dos superiores da empresa são seus funcionários, e o que está às mãos destes últimos é o tempo de trabalho com que dedicam-se ao que seus respectivos superiores designam-lhes; o resultado que a empresa colherá através deste tempo oferendado ao Mercado depende do jogo de Suas intempéries7.
Ao longo do ano, análises AvE8 são feitas para o monitoramento do alcance dos targets estabelecidos: se necessário, reduzi-los (metas mais conservadoras); se possível, seu incremento (metas mais ousadas). Ao final do ano, a aferição dos esforços, as batidas nas costas a quem couber, e os escoldos a quem precisar. E tudo recomeça no ano seguinte, com expectativas mais altas para anos brilhantes e cobranças maiores para anos péssimos – ou seja, sempre mais cobranças9.
Termoclinas da Verdade
“In many large or even medium-sized IT projects, there exists a thermocline of truth, a line drawn across the organizational chart that represents a barrier to accurate information regarding the project’s progress. Those below this level tend to know how well the project is actually going; those above it tend to have a more optimistic (if unrealistic) view.” (Bruce Webster)
Há coisas que um desenvolvedor, em particular, sabe visceralmente e que lhe é óbvio e lógico, mas que seus superiores não conseguem, de jeito nenhum, “deixar pra lá”. Eles querem que um projeto, que está fadado ao fracasso no momento de sua incepção, consuma o tempo de tanta gente, para… para o quê? Eles querem realmente saber o que os experts “lá embaixo” opinam sobre o sucesso ou fracasso desse projeto? Eles realmente ligam pro desperdício de tempo de seus subordinados? Ou há algo mais fundamental que efetivamente impede que a luz da verdade alcance seus olhos?
Bruce Webster, um desenvolvedor de TI, cunhou o termo “termoclinas da verdade” para descrever esse exato fenômeno: de como há uma linha, sutil mas real, de dissonância entre os cargos superiores e os cargos “inferiores”/“braçais” de uma corporação.
Referências
- MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Boitempo Editorial, 2015.
- The thermocline of truth (Rob Miller)
- The Wetware Crisis: the Thermocline of Truth (Bruce F. Webster)
Footnotes
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O famoso Return on Investment (ROI). ↩
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Que geralmente resume-se na criação de planilhas de Excel e apresentações em PowerPoint. ↩
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Tanto no sentido hierárquico quanto no sentido comercial do termo: “demandas top-down” tratam-se de objetivos/targets estabelecidos pelos altos escalões de uma empresa. Na prática, são a mesma coisa: cumpra as ordens que vêm lá de cima. ↩
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Ou seja, horas extras são implicitamente assumidas a fim de aproveitar os feriados sem trabalhar: deixar tudo pronto agora para poder aproveitar o feriado sem pendências. ↩
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“Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida.” (MARX e ENGELS, p. 37-38) ↩
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Que, por mais trivial que seja de relembrar, não são da própria empresa: tendem a ser indivíduos/corporações/holdings estrangeiros, ademais desvinculados com as empresas nas quais investem capital. ↩
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E estes louros dificilmente refletem fidedignamente o tempo despendido em sua obtenção… ou ao menos isso é o que sempre se sente enquanto funcionário. ↩
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Actual vs Expected. ↩
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A não ser que trate-se de um desperdício de dinheiro, os investidores seguem o que Marte diz a Júpiter n’Os Lusíadas: “E tu, Padre de grande fortaleza, // da determinação que tens tomada // não tornes por detrás, pois é fraqueza // desistir-se da cousa começada” (Canto primeiro, 40). É ingenuamente fútil cobrar um capitalista de desistir de um negócio que lhe seja lucrativo, ainda mais por motivos tão “baratos” quanto moral e bons costumes. ↩