up::

Trabalho da disciplina Propaganda Ideológica na ECA-USP sobre ideologia e monumentos públicos. Adicionei as referências utilizadas ao final, pois as tinha referenciado e não as deixei destacadas quando entreguei o trabalho…


Em decorrência dos protestos em escala global do movimento “Black Lives Matter”, em junho de 2020, a validade de certas representações de figuras históricas (como em estátuas de, ou nomes de ruas referentes a, certos indivíduos históricos) foi posta em questão, levando até à depredação e derrubada de monumentos em certos casos. Em particular, foquemos no caso da Bélgica, com relação à vandalização e remoção de estátuas do rei Léopold II.

Alcunhado de “le roi bâtisseur” (“o rei construtor”), Léopold II se tornou uma figura controversa em meio aos protestos antirracistas de 20201. Coroado rei em 1865, adquiriu, a título pessoal, uma boa parte da África Central em 1885 (cerca de 76 vezes o tamanho da Bélgica), chamando-a de Estado Livre do Congo. Entre 1885 e 1908, os principais
artigos ali explorados eram marfim e borracha, através do trabalho forçado de nativos; com isso, pôde reverter muito do lucro de sua colônia pessoal para a nação, como, por exemplo, para um programa extenso de reformas públicas. Estimativas históricas dizem que cerca de 10 milhões de congolenses morreram durante esse período, uma quantidade maior que a população da Bélgica nessa época2.

Foi criticado publicamente por outras potências imperialistas europeias no começo do século XX, pela crueldade com que os nativos eram tratados: muitos eram os casos de escravos que tiveram mãos e/ou pés amputados por desobediência ou por não cumprirem com as quotas de exportação, assim como o sequestro de crianças congolenses para serem levadas a “colônias infantis” para serem treinadas como soldados de seu exército pessoal. Em 1908, foi julgado legalmente por conta disso: perdeu o controle pessoal da colônia, a qual passou às mãos da Bélgica.

Um dos traços fundamentais da ideologia consiste em “tomar as ideias como independentes da realidade histórica e social” (CHAUI, 1984), de tal forma que essas ideias possam explicar a realidade (invés do recíproco). Mas não só recriar a história a partir de “fábulas”; devem ser reais o suficiente a fim de promover uma identidade nacional (CHAUI, 1984; EAGLETON, 1991). No discurso favorável a Léopold II, percebem-se duas táticas de propaganda (GARCIA, 1999): tanto a universalização de suas motivações (a colonização pagou muitos dividendos para o povo belga) quanto a transferência das mesmas (a colonização levou a civilização aos trabalhadores do Congo).

Em seu artigo à BBC sobre o valor de estátuas, Kelly Grovier diz que, desde sua primeira concepção, “estátuas eram menos sobre os indivíduos os quais elas representavam, e mais sobre como nós nos vemos nelas”3. Pensando em monumentos públicos, estátuas são mais sobre como uma classe deseja que nos vejamos nelas. Sob essa ideologia imposta pela monarquia, a criação de estátuas representando o “rei construtor” servem tanto de “comemoração” por sua “moral” e seus atos, quanto como uma “criação” e “perpetuação” dessa realidade advocada; de certa forma, elas não mais representam a pessoa Léopold II, e sim uma ideologia, uma visão orgulhosa não só do rei, mas dos próprios belgas e de sua nação, especialmente considerando a necessidade nacionalista de união frente à ameaça constante de invasão por outras potências europeias vizinhas; a estátua tratar-se de Léopold II em particular é somente incidental, pois sua figura age como não mais que uma “vitrine” à memória das “glórias de outrora”.

Mas o efeito contrário pode resultar dessas estátuas: ao condecorar uma figura que lucrou enormemente da mutilação e escravidão de milhões de africanos, acaba-se deslegitimando, ou relativizando “para o bem maior”, o sofrimento de afrodescendentes belgas. Hoje em dia, cem anos depois, acaba por fazê-los “sentirem-se menos belgas do que belgas ‘normais’”4, por verem diariamente uma figura abertamente racista, perpetuada em pedra. Não surpreende que tenha sido necessário um movimento antirracista global para que conseguissem justificar e extravasar seu ímpeto latente de enfrentar uma das maiores figuras históricas da Bélgica.

Referências

Footnotes

  1. Statue of Leopold II, Belgian King Who Brutalized Congo, Is Removed in Antwerp - The New York Times

  2. Belgium forced to reckon with Léopold’s legacy and its colonial past | Belgium | The Guardian

  3. Black Lives Matter protests: Why are statues so powerful?

  4. Leopold II: Belgium ‘wakes up’ to its bloody colonial past