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Monografia que escrevi para a disciplina Teoria da História I (de Jorge Grespan), sobre a diferença entre a concepção dialética entre Hegel e Marx.


A visão de Hegel: “o negativo subordinado ao positivo”

Quando Goethe pediu para que Hegel resumisse sua dialética, ele lhe respondeu que esta era o “espírito da contradição organizado” (em alusão a Mefistófeles, o “espírito da contradição”). Em sua filosofia, a contradição toma o lugar não de uma asserção lógica vazia de significado, mas de uma atividade, o movimento próprio que descreve tanto o pensamento humano (a razão em geral) quanto seus atos e movimentos. N’A Fenomenologia do Espírito, Hegel descreve a dialética dos fenômenos primeiros do “protagonista” de sua filosofia, o Espírito: primeiramente no fenômeno da consciência, onde há uma oposição entre Eu e Outro (o Externo, o Objeto), na qual tanto o Eu depende do Outro para definir-se (no sentido mesmo de “delimitar-se”) quanto o conceito de Outro requer o Eu para opor-se (como sendo seu “Não-Eu”); tal consciência supera esta contradição através do que Hegel chama de “especulação”, na qual o Eu toma-se a Si próprio como objeto, e dilui tais opostos antes contraditórios: a consciência coloca-se não só como o sujeito, mas também como o objeto de seu conhecimento, e, nessa superação, faz com que “a exceção confirm[e] a regra”1. Ao tornar-se autoconsciente (ou “consciente-de-si” segundo Safatle), tanto o Eu percebe que projeta-se no Outro (“formata”, com suas categorias próprias, a realidade) quanto percebe que o Outro introjeta-se em Si próprio (através da experiência); entra em contradição ao encontrar-se cercado por outras autoconsciências, correndo o risco de que não só exista algo no mundo que não “aponte para si”, mas que exista algum objeto ao qual sua própria existência “direcione-se” (invés de a si próprio)! Aos conflitos entre autoconsciências que decorrem destas contradições Hegel chama de dialética do “senhor e escravo”, a qual, quando superada, traz à tona o terceiro e último fenômeno: o Espírito.

Para Hegel, a história nada mais é que “o curso racional e necessário do espírito universal”2. O mundo, a realidade efetiva, passa a ser não mais que uma objetivação do espírito; o determinado, o particular, empalidece como mera instância do universal. No caso, faz-se um “jogo” dialético de oposição entre o particular e o universal: enquanto o universal engendra e realiza-se no particular, o particular caracteriza e constroi/produz a essência do universal. O verdadeiro papel do historiador para Hegel, portanto, é o de “remover os contingentes” de conteúdos particulares que porventura revistam-se de universais, e de atravessar, através do olho da razão, “a superfície e penetra[r] a variedade do garrido tumulto dos acontecimentos”3, buscando descrever o progresso do espírito em realizar seu princípio, seu telos (que é o conceito da liberdade).

Para Hegel, a consideração da História se faz mediante três categorias: primeiro, pela “categoria da variação”, o aspecto negativo que engendra a decadência e a ruína das civilizações; segundo, pela “categoria do rejuvenescimento”, o aspecto positivo pelo qual, numa analogia “aprimorada” à ressurreição da fênix, “o espírito não só surge rejuvenescido, mas sublimado, esclarecido (…) como um espírito mais puro”4, ou seja, o espírito gera a negação de seu princípio e, num retorno a si, subleva tal contradição, tornando-se mais puro; sua formação (Bildung) prévia torna-se material para a formação de um novo princípio, processo este no qual o espírito espraia-se e multiplica-se numa “inesgotável multidão de aspectos”. Todo este proceder dialético do espírito, em que o negativo dá lugar ao positivo, em que o espírito gera a negação de seu conceito e supera tal contradição, dando espaço a um novo conceito ─ tal movimento segue um fim último, um telos próprio, tal qual os planetas giram em torno do Sol mesmo sem saber da razão para tal movimento: a tal fim que rege este movimento, Hegel chama de “categoria da razão”, que mostra-se a nós como “a fé na razão que governa o mundo”, razão esta que se coloca tanto como a substância (“nada mais no mundo se manifesta a não ser por ela”) quanto a “forma infinita, o modus operandi pelo qual interage com o mundo. A história, portanto, é não mais que uma “teodiceia”, uma “justificação [racional] de Deus” (i.e. do espírito universal).

A história, para Hegel, não deve delongar-se acerca de contingentes nem indivíduos particulares, mas sim ser norteada através da elaboração do telos do espírito universal, manifesto através da história dos diferentes povos particulares. Ou seja, enquanto os próprios indivíduos particulares são instâncias do espírito universal, estes agrupam-se em povos que tornam-se distintos entre si, os quais também podem ser vistos como partes componentes daquele mesmo universal. Acerca disso, Hegel diz: “O espírito do povo é essencialmente um espírito particular, mas, ao mesmo tempo nada mais é que o espírito universal, absoluto ─ com efeito, este é um só (…). O espírito do povo é assim o Espírito universal numa configuração particular.5.

Hegel considera que a história começa somente quando “a racionalidade começa a aparecer na existência mundana (…), onde existe um estado em que ela ingressa na consciência, na vontade e na ação6. Não com as primeiras famílias ou comunidades humanas, posto que estas são ainda demasiado naturais, meras consciências imediatas num mundo alheio a si; a primeira civilização, o primeiro povo, surge quando se faz necessário criar uma realidade que seja adequada ao conhecimento e à efetivação dos “objetos substanciais e universais” ─ o Estado. Quando há uma autoridade que incumba-se tanto das res gestas (a “história em si”, por assim dizer) quanto da historiam rerum gestarum (a “narração histórica” do ocorrido) de um determinado povo, autoridade esta que não se reduz às ordens “suficientes para a necessidade do instante”, mas que cunha em pedra (metaforicamente ou não) a lei e a moral deste povo, como no provérbio verba volant, scripta manent ─ somente a partir daí, segundo Hegel, pode tal civilização fazer-se capaz de escrever a “prosa” de sua história.

Estabelecido o surgimento dos povos, surge a pergunta: qual é o princípio que é compartilhado entre eles? Segundo Hegel, o fim último do mundo é “a consciência que o espírito tem da sua liberdade”7, liberdade no sentido de uma atividade, da capacidade de autodeterminação, de autoapreender-se como consciência e de moldar-se a si mesmo através de suas obras e de seus atos; enfim, de ser autônoma (de dar-se suas próprias “leis”). Dessa forma, o espírito “não pode” ser livre sem ter a consciência de que pode sê-lo; tal é o “primeiro momento” da liberdade, em que somente quando o espírito torna-se consciente de sua potencialidade de autodeterminação, pode, então, ser efetivamente livre, autônomo (embora sempre seja, de fato, “livre em si”).

De início, um povo conhece somente seus fins imediatos (por exemplo, para sua subsistência), e somente pode “intuir” seu dever-ser, seu telos ─ primeiro intui-se, e logo busca pensar-se, conhecer-se como povo. A esta etapa, Hegel chama de “período da produção”, onde este povo coloca-se como objeto de si próprio (torna-se “consciente-de-si”, autoconsciente) e busca “fazer de si um mundo real”, através de suas obras, ou seja, através da criação de cultura, religião, arte, leis etc. que lhe sejam próprios, que “cumpra[m] e realize[m] a sua verdade, que produza[m] a religião e o Estado de um modo tal que sejam conformes ao _seu conceito”8. Contudo, quem faz o espírito de um povo são seus indivíduos particulares, movidos por seus próprios interesses particulares; somente quando “estão junto” de seu próprio fim (particular), quando têm interesse (inter-essere) neste fim, podem tais indivíduos levar o ser-aí à efetividade. E, dessa forma, surge o que Hegel chama de “segundo momento da liberdade”: que o indivíduo “encontre a sua satisfação própria numa atividade (…) [em] que o interesse seja o seu próprio interesse9. Ao interesse que sobrepuja todos os outros interesses de um indivíduo (numa relação decerto dialética), Hegel chama-o de “paixão”, e diz que é através desta que o espírito de um povo elabora-se; que não é por ser um fim particular que este não possa cumprir, também, o fim do espírito do povo.

“Mas o outro momento é o colapso da consistência do espírito de um povo, porque chegou ao seu pleno desenvolvimento e se esgotou”10, quando um povo chega ao seu dever-ser, quando não há mais uma cisão entre seu conceito e a realidade efetiva. Neste momento, as ações deste povo não mais negam-no, mas afirmam-no, são totalmente condizentes com seu espírito; ou seja, não se trata mais de uma relação dialética, não mais uma atividade em processo, mas um “brando deambular através de si mesmo”: o espírito deste povo “morre na fruição de si mesmo”. Hegel chama a esta etapa da história de um povo “período da reflexão”, na qual seus indivíduos veem-se não mais moralmente conectados com ele, mas dissociam-se dele, refletem-no invés de construi-lo ou fazê-lo através de seus atos. À morte de um povo segue-se o surgimento de outro, e tal transição, naturalmente, faz-se mediante a ação de indivíduos particulares, estes chamados por Hegel de “herois”, pois deixam sua individualidade restringir-se à sua paixão, à sua obra, até alcançarem seu fim de deitar ao chão tal povo decaído, momento no qual “assemelham-se a cascas vazias que caem ao chão”11 (a tal sacrifício do particular pelo universal, Hegel chama de “astúcia da razão”).

A visão de Marx: “explicar a ideia a partir da práxis real”

Segundo Marx, a existência humana é resultado de uma atividade (ou seja, produz a si própria), mas é inexoravelmente radicada nas condições materiais em que se encontra. A condição fundamental para que o homem “faça história” é satisfazer suas necessidades básicas de sobrevivência (comida, moradia, vestimenta etc.), produzindo os meios para satisfazê-las consistentemente12 ─ n’O Capital, Marx diz que a descoberta das formas de uso das coisas, no tocante à satisfação de necessidades humanas, constitui um ato histórico13.

Não necessariamente em sequência, mas coexistentemente, a segunda condição do processo histórico é a produção de novas necessidades, satisfeitas as necessidades humanas básicas; a terceira é a procriação não só da espécie, mas das estruturas sociais, especialmente conforme cresce a população e os interesses sociais modificam-se. O homem, portanto, sempre encontra-se atravessado pelas condições naturais que o circundam, e toda a sua história se dá através da cooperação entre os indivíduos; logo, tem-se que “a ‘história da humanidade’ deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria [relações homem-natureza] e das trocas [relações interpessoais]”14.

Marx conclui que a concepção de história não deve buscar, como em Hegel, as categorias com as quais analisar os períodos históricos, mas deve “explicar as formações ideais [ideológicas] a partir da práxis material”15, de que as condições materiais, tanto circundantes quanto produzidas, tanto atuais quanto legadas de gerações passadas, engendram o processo espiritual com o qual o indivíduo passa a pensar-se e a fazer-se. Tal trabalho “espiritual”, dissociado do trabalho “material” (produtor direto de valores de uso materiais), advém da chamada “divisão do trabalho”, e predominarão as ideias da classe dos detentores dos meios de produção materiais (ou “proprietários privados” de tais meios, à exclusão de outrem), ideias estas que são tão somente a “expressão dessas relações dominantes”16. À existência de uma “força estranha” que aparenta utilizar-se de indivíduos para seus interesses ulteriores ─ que Marx identifica como a alienação do trabalho, oriunda do desenvolvimento progressivo da divisão do trabalho (a ver abaixo) ─, Smith chama-a de “mão invisível do mercado”, enquanto Hegel chama-a de Espírito universal (ou de um dado povo).

Marx descreve, n’A Ideologia Alemã, o mecanismo pelo qual assentou-se o conceito do Espírito na filosofia alemã, que agora é visto como não mais que a ideologia dominante (burguesa) da época: primeiramente, as ideias dominantes devem dissociar-se desses próprios dominantes (ou seja, uma “dominação das ideias ou das ilusões na história”17 ante as condições empiricamente verificáveis); segundo, deve-se dar uma consecução “mística entre as ideias sucessivamente dominantes” (cujo ardil sustenta-se por estas terem uma base empírica em comum, i.e. serem oriundas da mesma classe dominante); por fim, faz-se necessário que tal conceito elaborado (no caso de Hegel, as autoconsciências, o espírito etc.) seja personificado, ou melhor, protagonizado, a fim de parecer mais “materialista”.

Crítica de Marx à dialética de Hegel

No posfácio da segunda edição d’O Capital, Marx distingue sua dialética daquela de Hegel, dizendo que, nesta, o processo de pensamento, que torna-se um “sujeito autônomo”, “é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro”. Para Marx, o processo dialético no sistema capitalista se dá justamente de forma inversa à de Hegel, onde não é mais o ideal que deixa-se entrever pelas frestas do real, mas em que o ideal é tão somente “o material, transposto e traduzido na cabeça do homem”18.

Embora tanto a dialética de Hegel quanto a de Marx concordem em que, como nas palavras de Hegel, “o verdadeiro não reside na superfície sensível”19, discordam no escopo que buscam desdobrar da realidade efetiva. Enquanto Hegel busca o universal que subjaz e perfaz as particularidades (imersas num caos de “contingentes”), Marx busca o contrário: busca “escavar” as contradições que caracterizam internamente fenômenos de fachada “trivial”, como na aparente igualdade jurídica que permeia a sociedade civil, mas que está erigida sobre a desigualdade social entre os proprietários privados dos meios de produção e aqueles que são proprietários somente de sua própria força de trabalho.

Mesmo a categoria mais fundamental do capital, a mercadoria, cuja aparência é “uma coisa óbvia, trivial”, abriga uma contradição entre seus aspectos determinantes, i.e. seu valor de uso e seu valor: embora o intercâmbio de mercadorias decorra justamente da troca entre valores de uso qualitativamente distintos, o valor da mercadoria busca negar tais distinções entre eles, quantificando-os e comparando-os somente pelo tempo médio de trabalho abstrato (“puro dispêndio de cérebro, nervos, músculos, e órgãos sensoriais humanos etc.”) que os gerou.

Um outro exemplo dialético em Marx é em como a divisão do trabalho induz a independência na produção e, ao mesmo tempo, a dependência na troca de mercadorias: justamente por especializarem-se na produção de cada vez menos produtos, os produtores tornam-se dependentes de que outros produtores produzam aquilo que irão necessitar mas que não produzirão. Para que tal oposição consiga persistir, faz-se necessário que haja um equilíbrio entre o comprar e o vender, i.e. que as forças estranhas (a “mão invisível do mercado”) mantenham tal equilíbrio de oferta e demanda; porém, ao contrário da dialética de Hegel, em que o positivo “subordina” o negativo, na vida real tais contradições manifestam-se numa negatividade explosiva: as crises.

Tais contradições aparecem no capitalismo, mas não podem ser sanadas, superadas dentro do sistema; o capital não fornece os meios pelos quais pode superar suas contradições; ele até pode “criar novos circuitos de mercadorias” para contorná-las20 (como ao vender-se como “capitalismo verde”), mas não pode superá-las em seu próprio modus operandi, porquanto busca tornar-se a totalidade do conteúdo do mundo, embora seja puramente formal ─ cria valor somente mediante o emprego da força de trabalho (mesmo que tenha tornado-a mercadoria). Esta é a relação dialética característica do capitalismo que Marx busca elucidar, em que o capital busca fazer-se “valor que se valoriza”, negando, portanto, o papel do verdadeiro gerador de valor, a força de trabalho (por exemplo, através do emprego de máquinas). Mas que, nesse processo, “opõe-se a si mesmo em uma contradição paralisante”21, processo este que resulta em crises cada vez mais violentas, as quais deverão ser justificadas e apaziguadas, time and time again, por seus fieis representantes e apóstolos capitalistas, ante a massa de assalariados que incorrerão tanto na destruição quanto na subsequente reposição do valor envolvido ─ ou até tal massa sublevar-se ante tal mundo de riqueza, de si parida e de si alienada, “superar a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes” e “desembaraçar-se de toda a antiga imundície”.

Footnotes

  1. HEGEL, G. W. F. A razão na história. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 142.

  2. Ibid, p. 33.

  3. Ibid., p. 34.

  4. Ibid., p. 36-7 (grifo meu).

  5. Ibid., p. 57 (grifo meu).

  6. Ibid., p. 137 (grifo meu).

  7. Ibid., p. 60.

  8. Ibid., p. 128 (grifo meu).

  9. Ibid., p. 74 (grifo meu).

  10. Ibid., p. 85-6.

  11. Ibid., p. 88.

  12. MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã, Boitempo, 2015, p. 33, 87.

  13. MARX, K. O Capital, Livro I, Boitempo, 2017, p. 113.

  14. A ideologia alemã, p. 34.

  15. Ibid., p. 43.

  16. Ibid., p. 47.

  17. Ibid., p. 50.

  18. Posfácio da Segunda Edição” em O Capital (Boitempo, 2017), p. 90.

  19. A razão na história, p. 33.

  20. KOVEL, Joel. The enemy of nature. Monthly Review, v. 49, n. 6, 1997.

  21. GRESPAN, Jorge. Marx: Uma introdução. Boitempo Editorial, 2021, p. 66.